Periferia de São Paulo. "Polícia, crime, igreja e trabalho são esferas de vida que se interpenetram'. Entrevista especial com Gabriel Feltran
“Em  São Paulo, a expansão do Primeiro  Comando da Capital - PCC foi a principal responsável pela  redução importante dos homicídios durante os anos 2000”, constata o  sociólogo.  "Ambos os regimes - estatal e criminal - tinham pressões para  baixar os homicídios - afirma. O crime foi bem mais efetivo".
| Foto:       Agência USP / Portal GGN | 
Segundo  ele, na última década “a vida nas periferias melhorou”, especialmente em relação ao  acesso à escolaridade superior e aos serviços básicos de infraestrutura urbana,  saúde e moradia, que “são muito melhores do que há 30, 40 anos”. Junto com  as melhorias  sociais, frisa, o “consumoexplodiu  pelas políticas de crédito que impulsionaram o desenvolvimento da economia” e  “celulares e televisores de última geração compõem, com carros, motos e novos  conjuntos habitacionais, as paisagens das periferias”.
Apesar  dessas mudanças, comenta, “essa mesma pujança econômica, globalizada, fortaleceu  o crime - o crime também é mercado e se  desenvolve com a ampliação dos mercados - e a criminalização  das periferias. A violência pela disputa desses mercados e,  sobretudo, a violência  policial contra  jovens nele inscritos (ou aqueles que se parecem com eles) cresceu demais. Nesse  sentido, a vida piorou muito”.
De  acordo com o sociólogo, “essa contradição aparente encontra, entretanto, no conservadorismo e no culto ao dinheiro, alguns pontos  de convergência, de síntese, importantes. A expansão neopentecostal - mas também  de força política do crime e das polícias - é talvez um dos reflexos mais  imediatos disso”.
Na  entrevista a seguir, concedida por e-mail, Feltran também comenta e explica as causas  do aumento  da violênciano país, especialmente nas periferias. Para ele, essa  situação está diretamente relacionada aos orçamentos policiais voltados à  segurança pública e privada. “Isso demonstra a falência desse sistema  repressivo, que mata muita gente - o Brasil teve mais de 60 mil homicídios em 2015! - e gasta rios de dinheiro  produzindo cadeias e ampliando polícias, para piorar o problema. Porque assim se  coletiviza e organiza o crime, produzindo mais e mais truculência, mais  polarização social. Hoje uma parte significativa do conflito violento nas  cidades é efeito colateral dessa polarização”.
A  saída, pontua, “seria regular mercados ilegais (que empregam os ‘criminosos’, na  verdade pobres criminalizados por trabalharem em mercados ilegais) e fazer  proteção social. Mas seguimos tratando a questão da violência como se fosse um  problema moral, causado pelos pobres. Nada mais equivocado”.
Gabriel  Feltran é professor  do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar,  coordenador de Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole - CEM e pesquisador do  Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento -  Cebrap. É doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas -  Unicamp.
Confira  a entrevista.
| Foto:       cebrap.org.br | 
Gabriel  Feltran - É uma pesquisa  de campo, primeiro individual, nas periferias  de São Paulo, depois coletiva, com o grupo NaMargem,  nosso núcleo de pesquisadores vinculados à Universidade  Federal de São Carlos - UFSCar, à Universidade  de Campinas - Unicamp,  ao Centro  de Estudos da Metrópole - CEM e ao Centro  Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap. Coletivamente atuamos em  diferentes capitais, cidades médias e pequenas. Estudamos o conflito  urbano - conflito ao  mesmo tempo social, geracional, político, econômico e violento - que emerge da  forma como as periferias foram historicamente pensadas e tratadas. E da forma  como reagem a esse tratamento.
IHU  On-Line - O que a pesquisa tem evidenciado, de um lado, sobre o modo de vida e a  violência nas metrópoles e, de outro, sobre a política ou o modo como as pessoas  se relacionam com a política?
Gabriel  Feltran - O conflito  urbano tem origem  na desigualdade abissal da nossa sociedade, subordinada  a uma pressão extrema por sucesso individual. Não é uma novidade que enquanto  uns criam os filhos com meio salário mínimo mensal, obtido por renda informal,  outros andam de helicóptero e gastam dois salários mínimos em um jantar.
Esse  conflito exige mediação, ou estoura em violência, inclusive letal. Políticas  sociais e econômicas feitas por governos, mas também a  emergência de "outros governos" nas periferias, como o "crime" e as igrejas, são  tentativas de mediar esse conflito. Não se compreende isso muito bem olhando de  fora das periferias. Mas dali de dentro se compreende melhor essa situação.
"70% dos participantes de um programa social na Cracolândia paulistana estiveram recentemente na cadeia" | 
IHU  On-Line - Quais são e como descreve os circuitos sociais dos grupos urbanos  analisados na sua pesquisa, como jovens de periferia, moradores de rua, usuários  de drogas, traficantes, criminosos e prostitutas?
Gabriel  Feltran - Esses grupos  são muito heterogêneos internamente. Há mulheres que fazem programa por uma  lasca de pedra de crack, outras que cobram dois mil reais. Há jovens inscritos  no tráfico que pensam apenas no dia de hoje, gastam mil reais em uma noite,  outros que trabalham durante o dia e estudam à noite, pagando prestações de  carro, casa e eletrodomésticos. Essa heterogeneidade que se nota de perto, de  longe vira estereótipo, preconceito, incompreensão e conflito.
Os  circuitos urbanos desses sujeitos respondem a essa heterogeneidade. Há vidas  tecidas inteiramente entre abrigos, prisões, unidades de internação e clínicas  de recuperação. Vidas  criminalizadas: 70% dos participantes de um programa social na Cracolândia paulistana estiveram recentemente na  cadeia.
São  Paulo tem um milhão  de ex-presidiários e as taxas seguem crescendo. Mas há parentes e amigos desses  sujeitos estudando em universidades públicas, como a que eu trabalho. Os  circuitos de vida são amplos e diversificados, os mundos têm tamanhos diferentes  a depender deles.
IHU  On-Line - Esses jovens da periferia participaram de junho de 2013?
Gabriel  Feltran - Seguramente  o movimento  estudantil esteve muito  presente nas manifestações. Mas não eram eventos das periferias, claramente. E  seus desdobramentos, a disputa interna aos movimentos, fortaleceu muito mais as  pautas dos grupos muito conservadores, como os de policiais e de elites  direitistas, do que as de integração das periferias.
O fascismo solto hoje no país, espalhado pelas  redes, é também fruto da vitória desses grupos em 2013, para além do esgotamento  da narrativa petista, do ciclo de institucionalização do petismo.
IHU  On-Line - Que percepção esses que moram nas periferias de São Paulo têm tido  sobre o Brasil na última década, sobre a situação social e política do país,  sobre o desenvolvimento de suas próprias vidas?
Gabriel Feltran - Percepções heterogêneas. De um lado, a vida nas periferias melhorou: escolaridade, inclusive superior, acesso a serviços básicos de infraestrutura urbana, saúde e moradia são muito melhores do que há 30, 40 anos. E na última década o consumo explodiu pelas políticas de crédito que impulsionaram o desenvolvimento da economia nos anos 2000. Celulares e televisores de última geração compõem, com carros, motos e novos conjuntos habitacionais, as paisagens das periferias.
Gabriel Feltran - Percepções heterogêneas. De um lado, a vida nas periferias melhorou: escolaridade, inclusive superior, acesso a serviços básicos de infraestrutura urbana, saúde e moradia são muito melhores do que há 30, 40 anos. E na última década o consumo explodiu pelas políticas de crédito que impulsionaram o desenvolvimento da economia nos anos 2000. Celulares e televisores de última geração compõem, com carros, motos e novos conjuntos habitacionais, as paisagens das periferias.
De  outro lado, essa mesma pujança econômica, globalizada, fortaleceu o crime - o crime também é mercado e se  desenvolve com a ampliação dos mercados - e a criminalização  das periferias. A violência pela disputa desses mercados e, sobretudo,  a violência policial contra jovens nele inscritos (ou aqueles que se parecem com  eles) cresceu demais. Nesse sentido, a vida piorou muito.
Essa  contradição aparente encontra, entretanto, no conservadorismo e no culto  ao dinheiro, alguns pontos de convergência, de síntese, importantes.  A expansão  neopentecostal - mas  também de força política do crime e das polícias - é talvez um dos reflexos mais  imediatos disso.
IHU  On-Line - Que relações esses jovens estabelecem entre si e com outras instâncias  sociais e políticas mais amplas, como a família, o mercado de trabalho, as  igrejas, as políticas sociais, o mundo do crime e o Estado? É possível chegar a  uma análise homogênea?
Gabriel  Feltran - Não, esse  universo, como dizíamos, é extremamente heterogêneo. O rapaz negro que trabalha  no shopping como segurança e faz faculdade à noite ou o filho de operário que  ingressou por ação afirmativa na universidade pública não têm visões de mundo  iguais às do irmão do PCC ou do pastor  da Igreja Universal, ou ainda de um soldado da Polícia  Militar. E eles podem estar na mesma família, porque os projetos de  vida são mais individualizados e o mercado de trabalho mais segmentado. Polícia,  crime, igreja e trabalho são esferas de vida que se interpenetram.
"A ordem estatal é mais hegemônica, mais legítima, entre as classes médias e elites, porque o Estado, a lei, a Justiça, são feitos para elas" | 
IHU  On-Line - Que comparações estabelece entre esses grupos sociais e grupos de  outros territórios urbanos?
Gabriel  Feltran - A ordem estatal  é mais hegemônica, mais legítima, entre as classes médias e elites, porque o  Estado, a lei, a Justiça, são feitos para elas. Entre os mais pobres, muito mais desfavorecidos e mesmo  criminalizados por essa ordem, há mais registros normativos, sejam morais, sejam  políticos.
IHU  On-Line - Quais são os principais conflitos que evidencia nas cidades  metropolitanas hoje? Qual são as razões que os motivam?
Gabriel  Feltran - A violência  policial e criminal só aumenta de intensidade no Brasil,  como os orçamentos policiais e voltados à "segurança pública" e privada. E com o  aumento da militarização – Unidades de Polícia Pacificadora,UPPs - e encarceramento. Isso demonstra a  falência desse sistema repressivo, que mata muita gente - o Brasil teve mais  de 60 mil homicídios em 2015! - e gasta rios de dinheiro  produzindo cadeias e ampliando polícias, para piorar o problema. Porque assim se  coletiviza e organiza o crime, produzindo mais e mais truculência, mais  polarização social.
Hoje  uma parte significativa do conflito violento nas cidades é efeito colateral  dessa polarização. A saída seria regular mercados ilegais (que empregam os  "criminosos", na verdade pobres criminalizados por trabalharem em mercados  ilegais) e fazer proteção social. Mas seguimos tratando a questão da violência como se fosse um problema moral,  causado pelos pobres. Nada mais equivocado.
IHU  On-Line - Que relações tem estabelecido entre as políticas estatais de segurança  e as políticas do crime de segurança? Como chega à conclusão de que governo e  crime não produzem políticas necessariamente opostas?
Gabriel  Feltran - Eu digo isso  para São  Paulo, em especial, porque ali a expansão do Primeiro  Comando da Capital - PCC foi a principal responsável pela  redução importante dos homicídios durante os anos 2000. Expandiu-se o crime - e  todas as taxas de criminalidade violenta - ao mesmo tempo que a justiça do crime  regulava estritamente a morte nas favelas e periferias. A queda das taxas de  homicídio foi capitalizada pelo governo do estado, como se fosse sucesso da  "segurança pública". Ambos os regimes - estatal e criminal - tinham pressões  para baixar os homicídios. O crime foi bem mais efetivo, nesse caso, embora a  desproporção de recursos e força em favor do Estado seja evidente.
IHU  On-Line - Que aspectos da metrópole precisam ser mais considerados, estudados e  analisados quando se estuda essa temática da violência?
Gabriel  Feltran - É preciso,  sobretudo, desnaturalizar a ideia de que os pobres são ignorantes, atrasados, alienados,  exóticos ou violentos. É preciso reconhecer as suas formas de vida, inclusive de  organização social e política. Em nossa pesquisa, tomamos essas formas de viver  como prisma para olhar a cidade. E acreditamos que assim entendemos mais  profundamente nosso cenário, em busca de soluções.
Por  Patricia Fachin
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