sábado, 28 de julho de 2018

Juíza Negra no Judiciário Brasileiro


"Se assustam quando me apresento como magistrada", diz juíza da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre
Há 19 anos na magistratura, Karen Pinheiro diz que é hora de levantar a bandeira das cotas para ampliar a representatividade racial no Judiciário do RS

27/07/2018 - 16h34minAtualizada em 27/07/2018 - 16h47min


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Fernando Gomes / Agencia RBS


Desde que assumiu a 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, há duas semanas, a juíza Karen Pinheiro tem duas missões distintas: apreciar e julgar cerca de mil processos de réus que respondem por homicídios e latrocínios e provocar o debate sobre a pequena, quase inexistente, presença de negros na linha de frente do Judiciário gaúcho. Atualmente, dos 671 juízes do Estado, apenas dois são autodeclarados negros. Há 19 anos na magistratura, ela decidiu que é hora de levantar a bandeira das cotas para ampliar a representatividade racial dos juízes no Rio Grande do Sul:

\NO BRASIL, 54% DA POPULAÇÃO É NEGRA. O JUDICIÁRIO É UM PODER DE MAIORIA ABSOLUTA BRANCA, ONDE O NEGRO NÃO SE VÊ REPRESENTADO.


Karen aponta para um diagnóstico muito duro da realidade do país: considera o Brasil um país racista, o Judiciário "um poder Imperial" e diz sofrer com preconceito por ser negra e sentar-se na cadeira mais alta na sala. Para ajudar a abrir as portas da carreira, a juíza lidera um movimento dentro do Judiciário que começou a conceder bolsas de estudos a estudantes de Direito negros e sem condições de custear cursos preparatórios para concurso de juiz.


Por que a representatividade do negro entre juízes é tão pequena?


É uma longa história. A história da população negra no Brasil nos faz ficar fora de todos os poderes, não apenas do Judiciário. Saímos da escravidão sem nenhuma cota que nos propiciasse o mínimo de acesso à educação e cultura. Fomos discriminados dentro de um projeto de sociedade, que se criou a partir daquela época, e que é excludente até hoje. O acesso ao emprego se dava apenas para aquelas tarefas de menor complexidade, que exigiam instrução mínima. Não temos um lastro familiar que nos proporcione condições de acessar as carreiras jurídicas. Para ingressar na magistratura, tu tens de, por longo tempo, te dedicar quase exclusivamente a isso. Tem de ter capital cultural elevado. Existe uma expressão que ouvi recentemente e que faz muito sentido: as carreiras jurídicas são carreiras imperiais. E a história do negro não se coaduna com isso. E, claro, vivemos numa sociedade que é racista, que agora vem se reconhecendo racista.





Que situação melhor explica o Brasil como sociedade racista?


Um dos exemplos sou eu mesma. Estou aqui no Judiciário praticamente sozinha. Quando ingresso em determinados ambientes, geralmente entro sozinha, sou eu e toda uma outra população branca. O Brasil tem 54% de população negra. E sou sempre o susto, as pessoas se assustam quando me apresento como magistrada, porque elas não identificam em mim, por ser negra, pessoa que seja capaz de ser juíza.


Pode dar exemplo de um episódio que a senhora viveu?


Ah, vários. Um deles: estava em sala de audiências, em comarca do Interior, sentada na cadeira onde fica o juiz, em posição mais alta. Um advogado entrou, pegou o processo que estava na minha mesa, não falou comigo e começou a folhear. Eu disse: "Por gentileza, o senhor pode me passar os autos porque vou iniciar a audiência?". E ele respondeu com surpresa: "Mas a senhora é a juíza? Pensei que fosse um leigo". Não era porque esse advogado se confundiu. Era, sim, porque se tratava de mulher negra.


Karen assumiu a 1ª Vara do Júri há duas semanasFernando Gomes / Agencia RBS


O que a senhora fez para superar barreiras e ingressar na carreira de juíza?


Tenho uma história que é exceção e ela não pode servir de exemplo porque só confirma a regra de exclusão. Na linha materna, sou a terceira geração com curso Superior. Para os negros que conseguiram estudar um pouco, o caminho foi o serviço público, onde existe a impessoalidade e a transparência nos atos praticados, apesar de, depois, não haver uma ascensão funcional. Meu avô prestou concurso para uma instituição bancária e passou. Tive a oportunidade de estudar em escola particular. Fiz magistério e comecei e dar aula em escola pública, numa periferia pobre. Quando fui para a escola da Ajuris, consegui bolsa de estudo. Houve muita dedicação, mas também sucessão de acontecimentos que acabaram me beneficiando.


Uma juíza negra à frente de uma Vara que julga processos cujos réus são, em parte, negros. Existe alguma relação nisso?


É complicado dizer isso, mas existe. É diferente o olhar com relação a essas histórias. Não que o meu olhar seja melhor do que o dos colegas. Mas é importante que exista também o olhar a partir de um indivíduo negro, que carrega toda uma história de exclusão, de falta de acesso à formação, que a sociedade entende que seja a melhor e que não os pertence. Na minha formação e na minha personalidade, carrego tudo isso. É importante que eu também traga essa contribuição. O entendimento, muitas vezes, é completamente diferente com relação à fala daquele ser humano (réu). Se você colocar uma mulher da vara de violência doméstica, a maneira como ela vai enxergar será diferente, vai enxergar a partir da sua história. Trazer diferentes olhares, mais plurais, vai compor um sistema de justiça que se aproxima muito mais do que pode ser o justo.


Questiono a legitimidade desse poder a partir do momento em que 54% da sua população não está aqui representada.
KAREN PINHEIRO


Juíza da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre


Mas, de forma prática, como esse olhar diferente pode contribuir para um julgamento justo?


Existem perguntas, formas de aproximação, peculiaridades que talvez uma pessoa não negra não perceba. Não que ela vá fazer uma jurisdição pior do que a minha e vou fazer um julgamento melhor do que o dela. Mas é que a minha história, as experiências que vivi dentro de comunidades negras, me dão essa possibilidade.


A falta de pluralidade racial no Judiciário é ruim?


Sim. A partir do momento em que você tem um Judiciário que não representa toda a sua população, você deixa de fora parcela significativa de vozes que não são ouvidas nos seus anseios, nas suas angústias e na sua história. Mais: essa população não se reconhece nesse poder. Ou seja, você tem um Poder Judiciário branco que jurisdiciona para uma maioria negra, que não se enxerga nele. Ele pensa: não estou ali, essa Justiça não é a minha, não carrega a minha história. Questiono a legitimidade desse poder a partir do momento em que 54% da sua população não está aqui representada.


A senhora defende cotas para negros no Judiciário?


No Judiciário, há anos existem as cotas. Mas, no último concurso para juiz, no ano passado, havia a reserva de 12 vagas para candidatos negros que não foram preenchidas, os concorrentes não atingiram o escore mínimo na prova. Ou seja, não bastam as cotas. Passar no concurso exige tempo de dedicação, dinheiro para a preparação e capital cultural.


É possível fazer algo além de garantir as cotas?


Sim. Presido o conselho do Instituto de Acesso à Justiça (IAJ), e vamos preparar estudantes negros e indígenas para alcançar a carreira da magistratura. Já temos alguns resultados. Acabamos de fazer um convênio com a Escola do Ministério Público que nos concedeu três bolsas*. O Instituto de Estudos Tributários também nos concedeu bolsas para estudantes negros.

Inter 1 x 0 Ceará