Gestão Piffero no Inter pagou R$ 9,9 milhões a empresas interligadas que não operam em seus endereços
Empreiteiras foram contratadas pelo clube para executar obras que não foram encontradas por auditoria realizada nas contas do biênio 2015/2016
23/03/2018 - 08h13min
CARLOS ROLLSING
FÁBIO ALMEIDA
JOSÉ LUÍS COSTA
LEONARDO OLIVEIRA
A gestão Vitorio Piffero no Inter ainda não acabou. Um dos responsáveis pela maior glória do clube, o título mundial de 2006, e pela maior vergonha, o rebaixamento à Série B, o dirigente tem sua última administração (2015-2016) sob investigação do Ministério Público (MP) e da Comissão Especial de Apuração do Conselho Deliberativo.
Promotores e conselheiros analisam como a gestão passada do Inter permitiu que R$ 18,4 milhões fossem sacados da tesouraria a título de adiantamentos – parte deles sem a devida comprovação da despesa. O valor de R$ 9,9 milhões teria sido aplicado em obras no Estádio Beira-Rio, construções não encontradas por consultorias contratadas para analisar as contas da gestão. Os apontamentos provocaram algo inédito nos 109 anos do Inter: as contas foram rejeitadas pelo Conselho.
Quatro empresas que receberam recursos registraram na Junta Comercial o telefone da Análise, escritório do qual são clientesAgência RBS
Um dos aspectos que mais levantam suspeitas na investigação sobre os recursos sacados por adiantamentos pela gestão Vitorio Piffero diz respeito a obras no Complexo Beira-Rio. Um total de R$ 9.915.160 teria saído dos cofres do clube para pagar quatro empresas por construções que as auditorias contratadas pelo Conselho Fiscal e pela atual gestão simplesmente não encontraram.
Com base nos endereços das empresas obtidos na Junta Comercial, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS percorreu cinco cidades em busca de contato com seus proprietários. Os locais em que deveriam funcionar suas sedes não se confirmaram. Descobrimos também que a União, que procura uma delas para cobrar impostos devidos, e a Justiça, que condenou uma empreiteira à revelia, também não as encontram.
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A reportagem identificou vínculos entre as empreiteiras. Duas delas, a Estela Regina Rocha da Silva e a Rejane Rosa de Bittencourt Eireli, pertencem à mesma pessoa, enquanto as outras duas, Keoma Construção e Pier Serviços Eireli EPP, têm proprietários que são sócios em uma terceira empresa.
A unir as quatro empreiteiras, um número de telefone de contato. No registro da Junta Comercial, todas elas têm o mesmo telefone, que pertence ao escritório Análise Assessoria Contábil, no bairro Partenon, na Capital.
— Não sou elo entre elas, e confio na lisura e na inocência dos meus clientes. Não tenho envolvimento com o Inter. Não posso me responsabilizar sobre onde as empresas atuam ou se estão funcionando naquela sede ou não – afirma o contador Adão Feijó, proprietário da Análise.
Feijó presta serviços há duas décadas para Ricardo Bohrer Simões, dono da Pier, em Porto Alegre. E, há 10 anos, teve como cliente Edson Joel Rodrigues, dono da Keoma, em Torres. A assessoria cuida ainda das contas das empreiteiras Estela Regina Rocha da Silva, em Viamão, e Rejane da Rosa Bittencourt Eireli, na Capital, cujo dono é Osvaldo Florentino da Silva, cliente da Análise há 20 anos.
– Não vou conferir se existem. Se vêm aqui, eu assino como testemunha da abertura. Façam a mesma pergunta para outros escritórios, é o mesmo procedimento – diz Feijó.
Segundo os diagnósticos da EY e da Baker Tilly Brasil, o trabalho das construtoras não obedeceu a rito contábil adequado e não teve contrato assinado entre as partes. Diante do Conselho Deliberativo do Inter, um dos auditores da EY contratados afirmou que a sua atenção para a suposta fraude foi chamada pelo fato de que somente uma empresa (cujo nome não foi divulgado) emitiu nove notas fiscais sequenciais em seis datas diferentes ao Inter, em um total de R$ 799,8 mil.
O porquê das suspeitas
— As empresas receberam do Inter R$ 9,9 milhões sem contratos de serviços e obras assinados. Parte do dinheiro foi sacada na boca do caixa.
— As consultorias não identificaram as obras que teriam sido realizadas no complexo Beira-Rio. A EY afirmou: “Não encontramos contrato de prestação de serviço, não encontramos nenhuma evidência que o serviço foi realizado”;
— As quatro beneficiadas com o dinheiro do Inter são ou foram clientes do escritório de contabilidade Análise, cujo telefone de contato consta nos registros de todas na Junta e na Receita;
— Parte dos valores foi recebida em espécie;
— Na prestação de contas, uma empresa forneceu notas sequenciais ao Inter ;
— A Baker Tilly do Brasil identificou, em 2015, 10 obras contratadas via cartas-convite. Tanto as empresas vencedoras das concorrências quanto as derrotadas faziam parte do mesmo grupo das quatro empreiteiras sob suspeita e eram clientes do escritório de contabilidade Análise.
Duas empresas, um mesmo dono
Uma das quatro fornecedoras de serviços ao Inter, a empresa Estela Regina Rocha da Silva foi criada em abril de 1998 e tem nome fantasia de Empreiteira Rocha. Na Junta Comercial do Estado, entre 2003 e 2012, a empreiteira registrou o mesmo endereço da Análise Assessoria Contábil, no bairro Partenon, na Capital. Atualmente, nos cadastros da Junta Comercial e da Receita Federal, a empreiteira está situada na Rua Constância Feijó de Fraga, em Viamão, com telefone de contato da Análise. A via, de chão batido, esburacada e sem saída para veículos, fica na Vila Augusta. Em vez de empresa, existe no local uma moradia há quase meio século.
– Moro aqui há 44 anos. Sempre foi residência da minha família. Nunca teve empresa nem conheço essa Estela. Vem oficial de Justiça com intimação para ela. Também vêm cartas, mas coloco tudo fora – afirma a dona de casa Débora Azevedo, 46 anos.
A partir do depoimento de Débora, o GDI foi atrás de Estela Regina Rocha da Silva, a mulher que empresta o nome à empresa. Dona de casa de 68 anos, é casada com Osvaldo Florentino da Silva, 72 anos. Ele é o administrador da empreiteira. O casal mora em um sobrado no Jardim Universitário, em Viamão.
No local, que parece ser sede da empresa, ficam guardados betoneiras e outras máquinas.
Dono de empreiteiras disse que fez limpeza e pintura
Em março de 2014, a empreiteira foi processada pela União por causa de dívida de 2007 com o Simples Nacional. O processo tramita na 2ª Vara Cível de Viamão. Em fevereiro de 2016, a Procuradoria da Fazenda Nacional pediu à Justiça o bloqueio de contas bancárias da empreiteira, mas nada foi encontrado. O processo foi suspenso por um ano – até novembro do ano passado–, aguardando localização de valores, mas tende a ser arquivado por não terem sido identificados recursos em instituições financeiras em nome da empresa. O tributo devido soma R$ 159,3 mil. Notas fiscais emitidas ao Inter indicam que o clube pagou à empreiteira um total de R$ 1.770.990 entre 2015 e 2016.
– Faz tempo que parei com a empresa. Não me lembro quando – diz Osvaldo.
Osvaldo também é dono da empreiteira que leva o nome de Rejane Rosa de Bittencourt Eireli. Especializada em obras de alvenaria, a empreiteira tem sede numa sala de 12 metros quadrados, que abriga apenas uma empregada, no segundo piso de um prédio, no bairro Partenon, zona leste de Porto Alegre.
De acordo com registros da Junta Comercial, a empresa foi aberta em setembro de 2012, sendo Rejane a única proprietária com capital social de R$ 62,2 mil. Aos 47 anos, mãe de dois filhos, ela trabalha como diarista. Localizada pelo GDI, Rejane contou que, após a perda de um filho, abandonou a moradia simples em um beco empoeirado da Vila São Lucas, em Viamão. Lembrou que abriu a empreiteira, mas nunca atuou no ramo da construção. Teria vendido a Osvaldo Florentino da Silva.
– Só abri a empresa. Aí, tive problema muito grave de família, apareceu uma pessoa indicada por alguém para comprar e vendi a empresa por uns R$ 5 mil ou R$ 6 mil.
Rejane lembrou que o combinado era excluir os dados dela da empresa, ficando apenas o mesmo CNPJ. Por telefone, Osvaldo confirmou que comprou a empresa de Rejane. Segundo Osvaldo, ele serviços de limpeza e pintura no Beira-Rio:
– Tenho tudo certinho. Acho que vocês estão atrás da pessoa errada. Já dei esclarecimentos para o Ministério Público.
Osvaldo disse que cópias das notas fiscais de serviço estariam com o contador das empresas, na Análise, e que voltaria a conversar com a reportagem. Quatro dias depois, mudou de ideia.
– Vocês têm de ver lá no Beira-Rio. A documentação está toda lá, o contrato, tudo ficou lá. Não tenho mais nada para falar – afirmou, antes de desligar o telefone.
As consultorias que apuraram as obras não encontraram nenhum contrato assinado com a empresa.
Duas empresas, sócios em uma terceira
O GDI não localizou as empresas Pier Serviços Eireli EPP e Keoma Construção Incorporação e Planejamento Ltda, nem seus respectivos proprietários, o engenheiro civil Ricardo Bohrer Simões e Edson Joel Rodrigues.
Criada em 2014, a Pier recebeu do Inter R$ 1.548.794 nos dois anos seguintes. O registro da Junta Comercial aponta que a empresa fica no oitavo andar de um prédio na Avenida Carlos Gomes, na Capital. Mas, na prática, a empresa apenas alugava o endereço para receber correspondências. Funcionou assim por três anos, até dezembro de 2017. Nunca teve funcionários nem mobiliário ou telefone de contato – usava o número da Análise Assessoria Contábil. Simões também tem 50% das ações de uma outra empresa com nome semelhante, a Pier Incorporadora, situada na Rua Presidente Tancredo Neves, 115, no Jardim Oliva, em Arroio do Sal. O endereço, contudo, não existe. A numeração salta do 107 ao 117. No registro de abertura da Pier Incorporadora na Junta Comercial, em fevereiro de 2004, constam os nomes de Adão Silmar Fraga Feijó, dono da Análise Assessoria Contábil, e a mulher dele, Denise Pereira Feijó, como testemunhas. Em março de 2014, metade da empresa foi adquirida por Edson Joel Rodrigues, dono da Keoma Construção Incorporação e Planejamento Ltda, que recebeu do Inter R$ 5.311.031 entre 2015 e 2016. Das quatro empreiteiras, a Keoma foi a que mais recebeu.
Agência RBS
Para a Receita Federal, a empreiteira está situada em um anexo do oitavo andar do Edifício Olinda, na Rua José Antônio Picoral, no centro de Torres. Mas não existem anexos no prédio. É formado por nove pavimentos com apartamentos ocupados, parte por moradores e outra por turistas. A administração do edifício desconhece a existência da Keoma. Um morador diz lembrar vagamente de Rodrigues, que teria morado no oitavo andar há cerca de quatro anos.
Keoma foi condenada à revelia pela Justiça
A Keoma tem dívidas pendentes em pelo menos duas ações judiciais, nas quais a empresa e o seu dono são procurados para quitar os débitos. Um dos processos tramita na 2ª Vara Judicial de Encantado, no Vale do Taquari, no qual um credor cobra R$ 430,3 mil da Keoma.
O valor corresponde a serviços de limpeza de bueiros, canaletas e roçadas executados em 2009 pela empresa do autor da ação, contratado pela Keoma, que prestava serviços em rodovias pedagiadas. A Keoma jamais teve advogado atuando no processo e, em maio de 2013, foi condenada à revelia a pagar a dívida.
Em Eldorado do Sul, desde agosto de 2013, um empresário move ação na Justiça contra a Keoma por uma dívida de R$ 40 mil. O credor prestou serviços com retroescavadeira e caçamba para a Keoma por oito meses em 2011. Pelo trabalho, recebeu oito cheques de R$ 5 mil cada, mas não tinham fundos. Os cheques pertenciam a uma terceira pessoa que os entregou a Edson Joel Rodrigues por conta de um negócio, mas, por causa de um desacerto, os cheques foram sustados.
A Keoma não tem advogado atuando no processo, e Rodrigues jamais foi localizado.
Agência RBS
Até 2015, Rodrigues morou com a família em uma cobertura de 280 metros quadrados na Rua Tomaz Gonzaga, em Porto Alegre.
– Seguidamente, vem oficial de Justiça atrás dele aqui, mas não sabemos para onde se mudou – disse um funcionário do prédio.
Edson Rodrigues foi procurado pelo GDI na Capital, em Torres, e em Arroio do Sal, onde seria a sede da Pier Incorporadora Ltda, na qual se tornou sócio de Ricardo Bohrer Simões, em 2014.
Em julho de 2007, Edson Joel Rodrigues comprou a Keoma de antigos proprietários. Para manter a empresa como uma sociedade limitada, ele precisava de um sócio. Convidou o hoje advogado Tiago Barcellos de Moraes para ingressar no negócio com 1% das cotas. Ele aceitou emprestar o nome, interessado na proposta de emprego que havia sido feita. Trabalhou por dois anos na Keoma, em Torres. No mesmo período, também recebia ordens da Pier, de propriedade de Ricardo Simões, sócio de Rodrigues.
— As duas (Keoma e Pier) são uma só. Só figuram com nomes diferentes. Na verdade, os dois são sócios. Eles sempre resolviam as coisas na base do calote. Eles vão enganar muito mais gente. Não é só o Inter. Enquanto eles estiverem na rua, vai ter pessoa lesada – diz Moraes sobre os ex-patrões.
Empresas que perderam cotações eram do mesmo grupo das vencedoras
A Baker Tilly Brasil verificou que, em 2015, dez contratações — minoritárias no campo integral sob análise — foram feitas pelo Inter a partir da distribuição de cartas-convite.
Os processos por cotação de preço, com medições de obras, foram referidas recentemente pelo ex-presidente Vitorio Piffero para defender sua gestão. Mas há fatos que chamam atenção: as vencedoras foram sempre as mesmas, Keoma, Estela Regina Rocha da Silva e Rejane da Rosa Bittencourt Eireli.
Todas remetem ao escritório de contabilidade de Adão Silmar de Fraga Feijó, que as assessora. Além disso, as empresas que perdiam as cotações também faziam parte do mesmo grupo das vencedoras e do escritório de Feijó. Exemplo: em carta convite de 16 de abril de 2015, a Keoma foi vencedora e emitiu notas de R$ 301 mil. As derrotadas foram Pier Serviços e Egel (Empresa Gaúcha de Estradas). Ocorre que os donos da Keoma e da Pier são sócios. E o dono da Pier possui procuração, junto com o contador Feijó, para atuar em nome da Egel. Ou seja, um grupo só dentro da mesma cotação de preço do Inter, situação que se repetiu nos demais procedimentos. Uma empresa chamada Conserte Certo, que sempre era derrotada nas comparações de preço, também é atendida pelo escritório contábil de Feijó.
Fonte: Zero Hora
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