segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Rei Vende Escravos

"Na África, indaguei rei da minha etnia por que nos venderam como escravos"

"Somos o único grupo populacional no Brasil que não sabe de onde vem", queixa-se o arquiteto baiano Zulu Araújo, de 63 anos, em referência à população negra descendente dos 4,8 milhões de africanos escravizados recebidos pelo país entre os séculos 16 e 19.
A reportagem é de João Fellet, publicada pela BBC Brasil, 14-01-2016.
Araújo foi um dos 150 brasileiros convidados pela produtora Cine Group para fazer um exame de DNA e identificar suas origens africanas.
Ele descobriu ser descendente do povo tikar, de Camarões, e, como parte do projeto Brasil: DNA África, visitou o local para conhecer a terra de seus antepassados.
"A viagem me completou enquanto cidadão", diz Araújo. Leia, abaixo, seu depoimento à BBC Brasil:
Eis o depoimento.
"Sempre tive a consciência de que um dos maiores crimes contra a população negra não foi nem a tortura, nem a violência: foi retirar a possibilidade de que conhecêssemos nossas origens. Somos o único grupo populacional no Brasil que não sabe de onde vem.
Meu sobrenome, Mendes de Araújo, é português. Carrego o nome da família que escravizou meus ancestrais, pois o 'de' indica posse. Também carrego o nome de um povo africano, Zulu.
Ganhei o apelido porque meus amigos me acharam parecido com um rei zulu retratado num documentário. Virou meu nome.
Nasci no Solar do Unhão, uma colônia de pescadores no centro de Salvador, local de desembarque e leilão de escravos até o final do século 19. Comecei a trabalhar clandestinamente aos 9 anos numa gráfica da Igreja Católica. Trabalhava de forma profana para produzir livros sagrados.
Bom aluno, consegui passar no vestibular para arquitetura. Éramos dois negros numa turma de 600 estudantes - isso numa cidade onde 85% da população tem origem africana. Salvador é uma das cidades mais racistas que eu conheço no mundo.
Ao participar do projeto Brasil: DNA África e descobrir que era do grupo étnico tikar, fiquei surpreso. Na Bahia, todos nós especulamos que temos ou origem angolana ou iorubá. Eu imaginava que era iorubano. Mas os exames de DNA mostram que vieram ao Brasil muito mais etnias do que sabemos.
Quando cheguei ao centro do reino tikar, a eletricidade tinha caído, e o pessoal usava candeeiros e faróis dos carros para a iluminação. Mais de 2 mil pessoas me aguardavam. O que senti naquele momento não dá para descrever, de tão chocante e singular.
As pessoas gritavam. Eu não entendia uma palavra do que diziam, mas entendia tudo. Era como se eu estivesse no meu bairro, na Bahia, e ao mesmo tempo tivesse voltado 500 anos no tempo.
O povão me encarava como uma novidade: eu era o primeiro brasileiro de origem tikar a pisar ali. Mas também fiquei chocado com a pobreza. As pessoas me faziam inúmeros pedidos nas ruas, de camisetas de futebol a ajuda para gravar um disco. Não por acaso, ali perto o grupo fundamentalista Boko Haram (originário da vizinha Nigéria) tem uma de suas bases e conta com grande apoio popular.
De manhã, fui me encontrar com o rei, um homem alto e forte de 56 anos, casado com 20 mulheres e pai de mais de 40 filhos. Ele se vestia como um muçulmano do deserto, com uma túnica com estamparias e tecidos belíssimos.
BBC
Depois do café da manhã, tive uma audiência com ele numa das salas do palácio. Ele estava emocionado e curioso, pois sabia que muitos do povo Tikar haviam ido para as Américas, mas não para o Brasil.
Fiz uma pergunta que me angustiava: perguntei por que eles tinham permitido ou participado da venda dos meus ancestrais para o Brasil. O tradutor conferiu duas vezes se eu queria mesmo fazer aquela pergunta e disse que o assunto era muito sensível. Eu insisti.
Ficou um silêncio total na sala. Então o rei cochichou no ouvido de um conselheiro, que me disse que ele pedia desculpas, mas que o assunto era muito delicado e só poderia me responder no dia seguinte. O tema da escravidão é um tabu no continente africano, porque é evidente que houve um conluio da elite africana com a europeia para que o processo durasse tanto tempo e alcançasse tanta gente.
No dia seguinte, o rei finalmente me respondeu. Ele pediu desculpas e disse que foi melhor terem nos vendido, caso contrário todos teríamos sido mortos. E disse que, por termos sobrevivido, nós, da diáspora, agora poderíamos ajudá-los. Disse ainda que me adotaria como seu primeiro filho, o que me daria o direito a regalias e o acesso a bens materiais.
Foi uma resposta política, mas acho que foi sincera. Sei que eles não imaginavam que a escravidão ganharia a dimensão que ganhou, nem que a Europa a transformaria no maior negócio de todos os tempos. Houve um momento em que os africanos perderam o controle.
"Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui."
Um intelectual senegalês me disse que, enquanto não superarmos a escravidão, não teremos paz - nem os escravizados, nem os escravizadores. É a pura verdade. Não dá para tratar uma questão de 500 anos com um sentimento de ódio ou vingança.
A viagem me completou enquanto cidadão. Se qualquer pessoa me perguntar de onde sou, agora já sei responder. Só quem é negro pode entender a dimensão que isso possui.
Acho que os exames de DNA deveriam ser reconhecidos pelo governo, pelas instituições acadêmicas brasileiras como um caminho para que possamos refazer e recontar a história dos 52% dos brasileiros que têm raízes africanas. Só conhecendo nossas origens poderemos entender quem somos de verdade."

"Negros não puderam viver luto pela escravidão"

Entre os séculos 16 e 19, o Brasil recebeu ao menos 4,8 milhões de africanos escravizados, todos forçados a abandonar sua identidade ao embarcar para o país.
A reportagem é de João Fellet, publicada pela BBC Brasil, 14-01-2016.
A produtora Cine Group convidou 150 brasileiros a fazer um exame de DNA para identificar o local de origem de seus antepassados africanos.
Após os resultados, a produtora acompanhou as viagens de cinco participantes às regiões de seus ancestrais.
As gravações darão origem à série televisiva Brasil: DNA África, a ser lançada nos próximos meses (a produtora ainda negocia os direitos de transmissão). A BBC Brasil entrevistou dois participantes sobre a experiência.
Leia abaixo o relato da artista e empreendedora carioca Juliana Luna, de 29 anos, que se descobriu descendente dopovo iorubá, da Nigéria:
"Na Bolívia, onde vivi parte da minha infância, existe uma superstição engraçada. Quando veem um negro, muitos têm o costume de beliscá-lo. Eles acham que isso dá sorte. Voltava da escola cheia de beliscões, e um dia minha mãe teve até que conversar com o diretor.
Mesmo assim, só comecei a questionar para valer minhas origens muito mais tarde, aos 17, quando morava no Rio e raspei meu cabelo. Ele era bem longo, resultado de um processo de relaxamento.
Foi um alívio. Minha mãe achou que eu estava perturbada e quis me levar ao psicólogo. Eu disse que precisava entender quem era.
Deixei o cabelo crescer naturalmente e passei a me identificar como negra. Na adolescência, eu me via como parda - até porque, quando dizia que era negra, as pessoas respondiam: 'Imagina!', como se isso fosse algo ruim.
Quando o exame no projeto Brasil: DNA África mostrou que eu descendia dos iorubás, da Nigéria, não acreditei. Já fazia algum tempo que eu vinha dando oficinas sobre como montar turbantes. E quem me ensinou a fazê-los foi uma família iorubá que conheci em Boston (EUA).
Tinha ido passar um feriado na casa de um amigo e, quando vi aquelas mulheres maravilhosas, com turbantes bombando, pensei: 'preciso disso na minha vida'.
Eu estava numa situação difícil, vivendo um relacionamento tóxico. Quando colocava o turbante, ele ia me enchendo de força, me revigorando de uma forma que não conseguia entender. Era a minha coroa.
Na Nigéria, entrevistei o músico Femi Kuti, um cara que usa sua arte como forma de militância. Ele disse que o povo africano não teve tempo de chorar, de viver o luto pelas pessoas sacrificadas pela escravidão. Comparou com o caso dos judeus, que sofreram o Holocausto mas depois tiveram uma fase de cicatrização e reconciliação.
Na Alemanha, toda vez que muda o primeiro-ministro (chanceler), ele tem de pedir perdão pelo massacre dos judeus. Não houve isso no nosso caso, tudo sempre foi jogado para baixo do tapete.
Também entrevistei o Wole Soyinka, primeiro negro a ganhar o Nobel de Literatura. Ele tinha uma voz superforte - parecia um deus - e me disse que a única coisa que pode fazer com que a reconciliação aconteça é a arte, que só ela pode construir uma ponte entre universos tão quebrados. Porque a arte cria reverberações e é uma linguagem que todo mundo consegue entender.
Fiquei muito tocada com as conversas e pensei que, com minha arte com os turbantes, estou criando micro-reverberações. Porque eu não o ensino só para mulheres negras, mas também para as brancas.
Quando fui convidada ao programa da Fátima Bernardes, na Globo, fiz um turbante na cabeça dela. As pessoas ficaram bem incomodadas não só pelo fato de que ela, representante da elite branca brasileira, havia usado um turbante, mas porque eu, uma negra, tinha feito o turbante nela.
Eu vi aquilo como um 'hackeamento', uma forma de construir um diálogo, para que a gente avançasse a outro patamar.
Muitas vezes somos agressivos e ficamos nessa dualidade você-eu, mas nem sempre o conflito nos ajuda a crescer. Minha forma de hackear o sistema foi fazer um turbante na elite branca em rede nacional. Sem agredir, só educando.
A viagem para a Nigéria me despertou para a importância de nos conectarmos com nossa ancestralidade. Lá aprendi que, na filosofia iorubá, todos pertencemos a uma linha, costurada e conectada a tudo que remete aos ancestrais.
Por isso, quando uma criança nasce, não é nomeada no primeiro dia. Os mais velhos se reúnem e perguntam aos espíritos dos ancestrais como ela deve se chamar. O nome é a missão de vida daquela pessoa.
Lá também ouvi que, independentemente da cor da pele, somos todos conectados e existe um fluxo de consciência coletiva. Não é porque não sou judia que não vou sentir empatia pelo que os judeus sofreram no Holocausto. Quando você se coloca no lugar do outro, deixa de ser você e passa a ser o outro.
É isso o que nos falta na questão do negro. Se cada um buscar essa conexão, assumir sua responsabilidade e pedir perdão, veremos que estamos todos no mesmo barco."

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