GRIÔS. Adeus Saberes, Histórias, Lendas e Mitos.
Desde que foram trazidos, a fero e a força, da Mãe África os negros e as negras escravas tiveram suas histórias, mitos e lendas preservadas pela figura do (a) contador (a) de história tradicional, estabelecido nos saberes, conhecimentos e vivencias dos mais velhos. A saudade da África distante; a trágica viagem no bojo do navio negreiro; a chibata, o tronco e a câmara dos suplícios; a fatídica jornada nos engenhos, nas minas e nas plantações; o penoso e desalentoso viver na senzala...
Nada disso, contudo, conseguiu apagar da memória do velho e da velha negra africana o registro de vida; de luta; de resistência; da religiosidade; da culinária; das ervas, plantas e das rezas que curam; da capoeira; do maculelê, do batuquejê, das mandigas; e do lundu, o ancestral do samba, que hoje enriquecem a nossa história da ancestralidade africana no Brasil. A nossa verdadeira história.
A verdadeira e legítima história da Raça Negra no Brasil tem vários porta-vozes, numa só denominação: Griôs.
Valeu a contribuição de Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Artur Ramos e outros? Sim, valeu. Mas eles mesmos tiveram como fonte das suas pesquisas, as informações que lhes foram passadas pelos velhos negros e pelas velhas negras, remanescentes de escravos, que lhes reportaram o que ouviram dos seus pais, avós, bisavós e tataravós. Mesmo os pintores como Debret e Rugendas, que retrataram o que presenciaram no cotidiano dos escravos, valeram-se dos Griôs para ilustrarem com palavras suas gravuras.
No seu brilhante estudo Do Griô ao Vovô: o Contador de Histórias Tradicional Africano e Suas Representações na Literatura Infantil, o escritor, ilustrador e arte-educados, Celso Sisto Silva, descreve: Griôs, os condutores do rito do ouvir, ver, imaginar e participar, são os artesãos da palavra. São os que trabalham a palavra, burilam, dão forma, possuem essa especialidade de transformar a palavra em objeto artístico. (...) São eles os mantenedores da tradição oral africana, nos últimos setecentos anos, sem dúvida.
A história da escravidão negra no Brasil teve vários redatores, mas todos eles, sem dúvida alguma, valeram-se das confiáveis fontes dos velhos e das velhas negras, seja nas senzalas, nas casas grandes, nos engenhos, nas minas e nas plantações. O padre luso-italiano, André João Antonil, no seu livroCultura e Opulência no Brasil, obra importante para o estudo do Brasil colonial, da passagem do século XVII para o XVIII, quando retratou as atividades escravas no seu livro, também recorreu aos relatos dos mais velhos para fixar seus apontamentos.
É fato, notário e sabido a relevância e a importância dos relatos dos Griôs para a formação histórico-cultural do Brasil e, sobretudo, da história do negro antes, durante e depois da escravidão. Mais uma vez valho-me das antro-poéticas palavras do escritor Celso Sisto Silva nas sua sábias referencias aos Griôs: Contar é ritualizar. É dar voz ao ancestral. É abrir o corpo para o sagrado. É compactuar com a visão mágica. Palavra lapidada na boca do velho Griô é palavra fulgurante. Joia de mil brilhos. Pedra multifacetada. Ele tem muitos corpos: feiticeiro, bicho, caçador, sacerdote, rei, bruxo, chefe, guerreiro. O mundo começa na sua palavra. Dançar o céu, o mar, o rio, a nuvem, a sombra. Cantar os velhos ensinamentos. Narrar a natureza, o clã, a aldeia, os símbolos, a floresta, a savana, o deserto. Seu itinerário é reforçar laços. Ordenar o mundo. Perfumar a memória. Virar história.
Desde os tempos do cativeiro, os contadores e as contadoras de história dos africanos no Brasil, iluminados pela luz do luar e palas chamas crestantes das fogueiras, mantinham os ritos de passar para os mais moços todo o legado histórico, adquiridos a ferro e a fogo durante o trabalho servil. Mesmo vítimas dos mais cruéis castigos; tendo filhos, esposas e maridos arrancados do seu seio familiar para ir servir a outros patrões, em outras terras, de outras fazendas, minas e engenhos, nunca se omitiram de transmitir a suas futuras gerações a gênese africana no Brasil.
A existência e as lutas de Manoel Congo, da Maria Crioula, da Maria Felipa, das Dandaras da Florestada Tijuca, do Curiango, da Nega Cafuza, do Nêgo Bomba e de muitos outros heróis e heroínas negras, hoje esquecidos e omitidos dos compêndios de História do Brasil, só chegaram aos nossos conhecimentos por meios das divinas e dos divinos Griôs.
Os tempos passaram, os negros impuseram sua arte, cultura e religiosidade, mas não conseguiram, contudo, respeitar, preservar e documentar a sua própria história, valendo-se da importância dos velhos e das velhas contadoras de história. Hoje, os negros e as negras que perceberam na Causa Negra e na Causa Quilombola uma rica fonte de renda, e não de conhecimento, de luta, de resistência e de igualdade, relegaram ao esquecimento os Griôs, para se alimentarem do regurgito dos políticos brancos, seus patrões e sinhozinhos.
E há muitas e muitos Griôs por esse Brasil afora, no esquecimento, mas representados por meio das parteiras; rezadeiras; erveiras; benzedeiras; sacerdotes, sacerdotisas e praticantes dos cultos africanos; pastores e pastoras dos cultos cristãos; padres; mestres das folias de reis; mestres e mestras jongueiras; e as e as divinas senhoras das alas das baianas das escolas da samba. Negros e negras que nas sábias palavras da escritora e antropóloga Helena Theodoro: – Representam as cabeças coroadas pelos cabelos brancos, simbolizando a sabedoria africana dos mais velhos. Elas (e eles) vêm do tempo de Tia Ciata, Tia Bibiana e muitas outras que, na Praça XI, dançavam o samba de roda da Bahia e louvavam os orixás.
É triste, é trágico, é lamentável e inexplicável, mas nossos e nossas Griôs estão morrendo, sem que lhes deem ouvidos as suas histórias. Só aqui, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, nesses últimos dez anos, perdemos Dona Cotinha, Dona Mercedes, Dona Ciana, Seu Isidoro, Seu Firmino, Seu Belarmino, Seu Anastácio, Dona Senhorinha, Dona Veríssima... A maioria, sacerdotisa e sacerdotes dos cultos de matrizes africanas, negros e negras, com mais de 85 anos.
Há muitos outros Griôs em toda a Baixada Fluminense. Dona Rosa, do Lar de Narcisa, 94; Dona Castorina, 90; Seu Jorge da falecida Dona Penha, 89; Padre Onofre; 91; Seu Tião Carroceiro, 92; Dona Valdivina, 93; Dona Neuzita, 93; Seu Macário da Folia de Reis, 90; Pastor Juraci, 91 anos, e muitos outros e outras Griôs. A maioria sacerdote e sacerdotisas dos cultos africanos ou dos cultos cristãos. Todos negros e negras.
, também, uma das figuras mais encantadoras que possa existir, com seus causos antológicos e as suas histórias hilariantes: Seu Aderbal, o Doutor Raiz. Negro como a noite e coma carapinha branca como aquela nuvem no céu,como ele mesmo se autodefine. Nos seus 95 anos, esbanja vitalidade, alegriae ainda faço por demais aquelas coisas com aminha nega véia, afirma com toda convicção. Eis alguns de seus causos e histórias:
“Quando menino, com onze anos, eu tava em Copacabana e vi a marcha dos 18 do Forte que, na verdade, era só meia dúzia de gatos pingados. Contei um por um” – “Certa feita nos anos 40, na Lapa, dei na cara da Madame Satã. A bicha foi dizer pro Pixinguinha e pro Ismael Silva, que eu não era comunista coisa nenhuma. Desci o braço”. – Quando a coisa tava fervilhando, falei pro compadre Gregório (Fortunato): o senhor fez besteira em regatear com o Alcino pra passar fogo no Lacerda (Carlos). Se o caboclo errar o tiro, vai acertar o Dr. Getúlio (Vargas). E deu no que deu.” – Cansei de falar pro Juscelino (Kubitschek: Vosmicê é comunista dos bão.” – Outro presidente que ajudei foi o Jango (João Goularth). Com minhas raízes curei, nele, uma gonorreia que ele pegou com uma bailarina do finado Carlos Machado”. – O Jânio (Quadros) não renunciou. Renunciaram ele. – Mal pisou em Brasília o Oscar (Niemeyer) pegou uma baita de uma maleita. Fiz um apreparo de raiz com casca de Mutamba e mandei pra ele. O caboclo ficou bonzinho da silva. – “Cansei de falar pro Brizola (Leonel): Esse caboclo, o Cibilis (Vianna) não vale o que come e vai te passar a perna”. – Esse Pezão (Governador Luís Fernando) que tá ai, é aquele mesmo caboclo, que no tempo do Banerj, botava no bolso uns dinheirinhos extras que deveria ir pros cofres?”
Já apresentei projetos para cadastrar, registrar, documentar e ouvir as histórias dessas divinas senhoras e divinos senhores, mas o Ministério, as Secretarias Estaduais e Municipais de Cultura não veem importância nesse registro. Talvez, também, porque não pertenço a nenhum conchavo politiqueiro e nem compactuo – na verdade, combato – a súcia e a corja dos que veem na Causa Negra e na Causa Quilombola um caminho para se levantar uma grana e conseguir cargos públicos.
Ao comentar, numa roda de bate papos com negras e negros, ditos defensoras da igualdade racial e resistentes da luta negra, sobre a necessidade imediata de se dar maior visibilidade aos nossos Griôs, em todo Brasil, ouvi estarrecido de um desses líderes, que a negritude brasileira precisa de fatos. – Pois de lenda os balaio já estão cheio – concluiu em tom de deboche.
Ao cidadão e aos ouvintes, ali presentes, lembrei uma cena do antológico filme clássico de John Ford, O Homem que Matou o Facínora, quando uma personagem profetiza para a outra: Quando a lenda suplanta a história, publica-se a lenda.
Suas bençãos divinas e divinos Griôs.
Abraços a todos.
Flávio Leandro
Cineasta, Professor de Produção Audiovisual, Professor de Produção Teatral.
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