terça-feira, 8 de setembro de 2015

Marcha do Povo Negro

A marcha contra o genocídio do povo negro incomoda os inimigos porque nos tira do controle da supremacia branca: lamentamos o rancor de quem come no prato que cuspiu

Há 10 anos, um grupo de aproximadamente 300 pessoas vindas de vários pontos da Bahia ocupou a Secretaria de Segurança Pública do Estado e proclamou um estatuto de enfrentamento ao poder estruturador do Estado Brasileiro, que são o racismo e o neocolonialismo alicerçados para dar proteção à política de supremacia branca. Declaramos os mortos como nossos companheiros de jornada, seus familiares e as mulheres entre nós como nosso comando, a rua como palco, a solidariedade, a ação comunitária e a autodefesa como métodos. Nascia aCampanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto.

Há uma semana, dia 24 de agosto de 2015, um cordão de pretas e pretos do Brasil e do mundo tomou a cidade de Salvador depois de um encontro político e teórico de dois dias nas dependências da Uneb (Universidade do Estado da Bahia) no Cabula, depois de recebermos mensagens do Chile, da Colômbia, da Alemanha, da Espanha, Estados Unidos, Áustria e França. Tomamos as ruas do Cabula em duas colunas batizadas de Coluna de Autodefesa Uhuru, coluna de proteção de mães e familiares para erigir um memorial aos mortos do Estado Racista Brasileiro. Erguemos o memorial no local onde a Rondesp executou mais de 15 jovens homens negros. Estávamos lá sob as lágrimas e os testemunhos de mães, avós e irmãs. Não foi “teatralização excessiva”, foi a dor que pulsa em nós enquanto certos picaretas tiram selfie e dançam com os executores sua igualdade maculada.

No mesmo dia, à tarde, no Quartel dos Aflitos, o mais antigo quartel da Polícia Militar do Brasil, diante de mais de 5.000 mil pessoas e uma tropa nos intimidando e intimidando os manifestantes, deixamos uma mensagem dura e sem retoques: nós não vamos morrer em silêncio. E seguimos rompendo a rua, deixando toda a tropa aturdida com uma massa de gente preta sem nenhuma propaganda do governo.

Nós não amamos nossos opressores, não queremos agradá-los e esmolar seus cargos e editais. Estamos criando na prática autogestionária, autonomista, pan-africanista, uma ferramenta de autodefesa que tem criado incômodo nos comandos das polícias, nas tropas, nos governos genocidas de esquerda e direita e nos ativistas que veem seu projeto governista afundar. Que afundem sozinhos, que mergulhem com sua mágoa entre vocês. Abandonem-nos com nossas “proibições disso e daquilo”.

Temos recebido ataques de policiais, soldados citados na justiça por abusos, gente de grupos de extermínio que espalham nossas fotos por redes sociais e nos ofendem com textos ameaçadores. Esse método não nos fez tremer e nem vacilar quando paramos em frente ao quartel da polícia com nosso “fardamento”, com nossa cara fechada, nossas bandeiras e nossas palavras de ordem.

Gritamos “Cabula!”,  para o espanto dessa gente bem vestida e cheia de títulos acadêmicos que silenciam em eventos abarrotados de grana e “sucrilhos da Kelloggs” fazendo contemplação sobre o nosso destino. O nosso destino é espalhar revolta pelo Brasil e dizer ao mundo que aqui é um país que mata pretos e pretas e que enterra lideranças governistas num túmulo de vaidade, frustração e rancor.

Foi veiculado recentemente pela página do Geledés um texto de um “ativista” negro, ex-assessor especial da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), que passou todo o governo Lula criticando Matilde Ribeiro e Edson Santos, cujo conteúdo pretende nos difamar, nos desqualificar – nos atacar tal qual um soldado da Rondesp faz conosco todos os dias aqui na Bahia? Age como inimigo fazendo alegações sem consistência. E olhem que ele é o melhor que essa gente perfumada que adora os “puxadinhos” do governo tem.

No texto, o ex-assessor não fala uma palavra sobre a polícia que mata negros, sobre o governo que colocou o exército para matar e controlar gente preta na Maré (RJ). Ele pegou um avião, foi para a Bahia buscar palanque em nossa organização construída sem os brilhos dos banquetes governamentais e dessas ONGs negras submetidas ao modelo imposto para facilitar a barganha com seus fundos, agências e governos, organizada do Nordeste para o mundo, longe dos holofotes do centro político do país.

Ora, não temos nenhuma restrição a intelectuais negros, muito antes ao contrário: um sem número de intelectuais, juristas, artistas assinaram um manifesto de apoio a Marcha e esse fortalecimento nos é caro.

Nos quadros da Reaja temos garis, faxineiras, costureiras, doutores, mestres, acadêmicos, cozinheiros, motoristas. Temos contato com instituições acadêmicas na Europa, Estados Unidos e África. Mas o desespero e a fúria por não ter sido chamado para falar em nosso ato deixou perturbado o ex-assessor da Seppir. Ele assumiu seu ódio publicamente por nosso método e pela forma que organizamos nossa dor, nosso sofrimento e nosso ódio. Temos muito o que fazer diante do mar de sangue em que vivemos e esses ataques estéreis que só são lidos por meia dúzia de iluminados de fato nos tira do foco. Mas nos deixa preparados para o enfrentamento.

Ao contrário do que fala o texto, que de algum modo joga para nos criminalizar e atacar nossas energias, nós não somos um movimento juvenil. Somos uma organização com pessoas que vão dos 15 aos 70 anos, como a avó de Kaiquinho, jovem negro que foi morto no Cabula por policiais que não são citados pelo nosso letrado missivista, que ao fazê-lo desconsidera essas mulheres e esses meninos que até pouco tempo seguiam presos nas instituições de sequestros ou que viviam nas ruas consumindo crack e comendo lixo e encontraram na Reaja um lugar para se restabelecerem e fazerem luta. Fomos declarados como inimigos desse jornalista ex-assessor da Seppir. Que ele se dane! Nós seguiremos a Marcha histórica ancestral que herdamos do movimento negro, que saiu às ruas bem antes de ele se desfiliar do PT.

Yedo Ferreira, no alto de seus 90 anos, é símbolo de nosso respeito aos militantes que chegaram antes e nos enviou uma mensagem sem pedir aplausos, só nos fortalecendo. Então, não nos falem em respeito se você nos ataca gratuitamente, fazendo o jogo que a polícia espera... Um pretinho letrado preparando o terreno para sair executando a militância da Reaja, que saiu, definitivamente, desse barco governista que humilha seus tripulantes.

Dirijo-me à militância da Reaja, em cada acampamento e assentamento pelo interior do Brasil, em cada sala de aula, em cada universidade, nos centros de pesquisa, nos centros de graduação e pós-graduação, cada posse e grupo de Rap, cada cela de cadeia, cada comunidade favelada. Não ouçam a voz de desespero desse moço e seu grupo que se colocam como inimigos agora porque não conhecem a luta fora desse prédio institucional que abriga o racismo.

Voltemos a nossa tarefa, que agora é organizarmos uma coluna em cada núcleo de base e prepararmos para o que nos espera: a Vitória.

* e sobre os valentões que tentaram nos ameaçar na rua... aí não, é sem resposta e sem massagem.

Leia também:

‘Os poderes jurídicos brasileiros não dão relevância à vida do negro’ – entrevista com Hamilton Borges, após a chacina do Cabula

‘O Brasil objetiva a gestão penal e militarizada da miséria’ – entrevista com psicóloga Adriana Matsumoto sobre desmilitarização da polícia

Redução da maioridade penal: “A lógica do Estado Penal é encarcerar e explorar mão de obra” – entrevista com Givanildo Manoel, do Tribunal Popular – O Estado no Banco dos Réus

‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’ - entrevista com João Henrique Tristão, advogado da ONG Defensores dos Direitos Humanos

‘Temos a necessidade de criar redes de proteção aos jovens’ – entrevista com Anabela Gonçalves, do Coletivo Katu, após segunda chacina de 2015 no Jardim São Luiz – SP

‘Para os índios, só resta retomar as terras por conta própria’ – entrevista com Sassá Tupinambá, ativista indígena



Hamilton Borges dos Santos (Walê) é ativista da Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, diretamente da cidade-túmulo, Salvador.

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