quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Arquivo do Jornal Negritude

17/3/09

20 anos da Morte de Chico Mendes

Os desafios do legado de Chico Mendes
A maneira como uma pessoa é lembrada depois de sua morte depende inteiramente da interpretação que fazemos de suas falas, textos, imagens. Passados vinte anos, será que estamos interpretando Chico Mendes da forma como ele gostaria de ser lembrado? Será que estamos enfatizando aqueles aspectos que lhe foram mais caros, mais difíceis de conquistar, ou, com o tempo, estamos selecionando os que mais nos agradam e os reinterpretando ao nosso próprio gosto? Tenho sempre essas questões em mente quando penso em um balanço do seu legado.
Minha última foto com Chico Mendes, em 1988.
Uma idéia que vale uma vida
Independentemente das conseqüências presentes e dos desdobramentos futuros, uma idéia defendida por Chico e pelo movimento que ajudou a construir, valeu a sua vida: a de regularizar direitos de posse das comunidades tradicionais da Amazônia na forma de territórios públicos de uso sustentável de recursos. Essa, a meu ver, é sua principal contribuição à humanidade; tem alcance e gradiosidade e já beneficiou a geração dele, a de seus filhos e netos, e vai continuar gerando frutos para as que virão.
Mas não é uma idéia facilmente compreendida. Quando se referem a Chico Mendes, as pessoas simplificam dizendo que “ele defendia a Amazônia” ou que foi morto porque “defendia a floresta contra fazendeiros que queriam destruí-la”. Muita gente defende a Amazônia; o que distingue Chico Mendes e os seringueiros dos demais?
O que distingue Chico Mendes foi a revolução produzida nas relações sociais e econômicas na Amazônia logo após o seu assassinato, por meio da criação de Reservas Extrativistas. É importante entender o mérito do que está em jogo quando se cria uma unidade de conservação de uso sustentável para realmente captar o que foi diferente na vida e na morte de Chico Mendes. É preciso, também, voltar um pouco no tempo.
As comunidades tradicionais da Amazônia (seringueiros, castanheiros, pescadores, riberinhos) têm direitos de posse sobre as áreas nas quais vivem há gerações. As áreas de posse, denominadas de colocações, são em média de 300 hectares, repletas de matas, águas e riquezas da floresta. Mas essas áreas de floresta sempre estiveram em disputa na Amazônia. Antes de Chico Mendes e do movimento dos seringueiros, as pessoas que ali viviam eram expulsas cada vez que alguém resolvia grilar, invadir, ou comprar estas áreas; ainda acontece assim em alguns lugares da Amazônia.
Quando a legislação da reforma agrária começou a ser aplicada na Amazônia, na década de 1970, essas comunidades foram transferidas para projetos de colonização; em troca de suas colocações receberam lotes de 50 a 100 hectares geralmente sem água, em terra degradada, sem floresta. E não existia colonização para atividades florestais – os seringueiros deveriam ser transformados em agricultores. Eles perdiam o meio de vida e nós perdíamos a floresta, uma vez que suas antigas colocações viravam pasto.
A grande revolução de Chico Mendes e do movimento dos seringueiros foi acabar com expulsões, mudar o conceito da reforma agrária e provar que comunidades pobres podem mudar o destino e formular seu próprio modelo de desenvolvimento. Eles conseguiram o reconhecimento do direito de permanecer em suas colocações e, abdicando da propriedade privada, optaram por viver em um grande território de propriedade da União, assumindo o compromisso de cuidar dos recursos da floresta, da biodiversidade, das águas. De posseiros ameaçados, transformaram-se em gestores de recursos naturais de propriedade do Estado e, portanto, da sociedade brasileira.
Essa foi a revolução: seringueiros pobres, sem poder econômico nem político, conseguiram mudar os conceitos de reforma agrária e de conservação e formular uma política pública totalmente inovadora que não existia em nenhum manual de desenvolvimento ou de meio ambiente.
Chico e vários outros líderes, com apoio de advogados, antropólogos, técnicos governamentais, formularam esse conceito em 1985, lutaram por ele, mas essas idéias eram muito revolucionárias para serem aceitas e nada havia acontecido até 1988, quando ele foi assassinado. No contexto do Acre, onde essas mudanças surgiram, os desafios eram ainda maiores. O Acre vivia da grilagem de terras públicas, do assassinato de trabalhadores rurais para lhes tomar as terras, era refúgio de assassinos que haviam cometido crimes em outros estados brasileiros; qualquer mudança ali não aconteceria sem graves confrontos.
Chico não queria morrer, mas falava que ia morrer para sensibilizar as autoridades e evitar que isso acontecesse. Mas estou certa de que ele tinha consciência de que precisava arriscar sua vida por essas idéias. Essa é a diferença que faz dele um líder revolucionário: a convicção de que não podia recuar. Ao não recuar para defender sua própria vida, seu assassinato gerou o impacto social que levou a transformações estruturais.
Na prática, a cada vez que se cria uma Reserva Extrativista o governo assegura que populações pobres não sejam expulsas, não migrem para a periferia das cidades, não percam seus meios de vida e, muito mais que isso, tenham direito a serviços públicos e adquiram status de protetores da floresta. É uma radical inversão que ainda hoje alimenta sentimentos de ódio naqueles que gostariam de se apropriar da floresta para benefícios individuais de curto prazo.
Assim, ao falar sobre a contribuição de Chico Mendes é preciso dizer: ele fez uma revolução no sistema de propriedade na Amazônia garantindo que comunidades tradicionais pobres e invisíveis se transformassem em gestores de recursos naturais valiosos e estratégicos ao nosso país. Temos vastos territórios não desmatados porque essas pessoas concordaram em ficar ali e cuidar desse patrimônio em nome do nosso presente e do nosso futuro.
Um sonho que ainda não se concretizou
Todas as vezes que uma Reserva Extrativista é criada, o sonho de Chico Mendes está sendo realizado. As pessoas que vivem naquela área deixam de ser perseguidas e ganham um projeto de futuro; a floresta e os recursos naturais que ali existem deixam de ser derrubados e destruídos. Isso, na minha interpretação, é suficiente para justificar sua consagração como herói nacional. É também a comprovação de que a idéia é viável e bem sucedida.
Embora possa ser suficiente para a proteção da floresta como patrimônio natural, não é suficiente para as pessoas que vivem ali hoje. E não será suficiente para as gerações futuras. E é esse aspecto de seu sonho e de seu legado que precisa ser analisado hoje, quando lembramos os vinte anos do seu assassinato. Estou certa de que ele ficaria muito surpreso e satisfeito se pudesse ver quão longe suas idéias chegaram, mas estaria muito inquieto por constatar o quanto ainda precisa ser feito para tornar realidade as idéias que alimentaram esse projeto revolucionário no passado.
Chico tinha consciência de que criar uma Reserva era apenas o primeiro passo de um ambicioso projeto de levar os benefícios da civilização para dentro da mata. O sonho do Chico era que, passado o risco de expulsão, começasse o tempo de construção de infra-estrutura social, de investimentos na valorização da floresta, de educação e saúde, de comunicação. Sempre foram infinitas as possibilidades abertas por uma unidade de conservação que tem como guardiões os próprios moradores.
E é aí que reside o risco do projeto, do qual todos têm consciência: se, depois de criada a Reserva, os investimentos não acontecerem e as pessoas pararem de viver dos produtos da floresta, não terão mais razões para protegê-la, e as Reservas Extrativistas perderão a motivação principal de existir. Essa é a segunda grande contribuição de Chico Mendes e do movimento dos seringueiros: mostrar que é mais eficiente a gestão quando é feita por aqueles que nascem, se criam e dependem diretamente dos recursos da natureza para obter a subsistência.
Mas se as famílias que moram nas Reservas não puderem viver da floresta nem oferecer alternativas melhores para seus filhos, elas irão mudar de atividade – e como todas as demais formas de economia requerem a retirada da mata, o desmatamento está acontecendo em algumas áreas. Se os jovens não puderem se profissionalizar na gestão da floresta, eles irão para a cidade e perderão seus laços com história de seus pais – e isso já está acontecendo em algumas Reservas.
E existem também as conseqüências da abundância. No sistema atual, o único benefício que é transferido dos pais aos filhos é o direito de continuar morando na reserva, seja na mesma colocação original, seja em outras, abertas especificamente para os filhos. Se as famílias estão vivendo melhor e conseguindo guardar algum dinheiro, no que elas vão investir? Parece lógico que o investimento seja em algo que possa ser transportado, transformado facilmente em dinheiro, se necessário, e transferido como patrimônio para um filho que se casa e começa vida nova. Essa pode ser uma hipótese para o crescimento do gado na Reserva Extrativista Chico Mendes, por exemplo. Pode não explicar todos os casos, mas pode fazer sentido para alguns.
E é preciso considerar a questão geracional e cultural. As Reservas, hoje, têm energia e as casas, televisão; os moradores da Resex Chico Mendes têm moto e vão e voltam para Xapuri em minutos; quais as influências dessa nova cultura sobre as crianças e o jovens? Nas Reservas do Amazonas o governo criou pequenas vilas e as pessoas deixaram de morar espalhadas pela beira dos rios como faziam antigamente. É uma semi-urbanização que traz grandes mudanças na vida das famílias: os jovens ficam à toa sem ter o que fazer; perdem a familiaridade com a floresta porque não se socializam andando pela mata desde pequenos como aconteceu com seus pais; a Bolsa Família, associada à oferta de alimentos da floresta, aumenta a o tempo disponível sem opções de trabalho ou de lazer.
Essa nova configuração das Reservas de Uso Sustentável precisam ser conhecidas, debatidas, analisadas e avaliadas. Em que medida o sistema de concessão de uso continua sendo o melhor modelo de gestão?Até que ponto a inexistência de opções de transferência de patrimônio entre as gerações desestimula a busca por melhores formas de produção? Não havendo alternativas de profissionalização o que farão os jovens que querem melhorar de vida a não ser migrar para as cidades?
Vinte anos depois é necessário fazer um balanço do modelo, juntamente com as lideranças originais, com as famílias moradoras e seus filhos, com os professores das escolas, com os parceiros institucionais, com os gestores das associações e cooperativas e reinventar o modelo, ajustá-lo à realidade do novo século, revitalizar conceitos e práticas.
Essa revisão inclui também o poder público: em que medida vem cumprindo com sua parte no acordo; quais os investimentos que estão sendo feitos nas reservas; quantas oportunidades estão sendo abertas para jovens que queiram fazer curso superior; quantas processadoras de matérias-primas florestais vêm sendo implantadas; quantas pessoas foram qualificadas em gestão ambiental.
A Reserva Chico Mendes é um exemplo claro da necessidade dessa revisão. Se ela está invadida por fazendeiros, como afirma o Ibama, não é suficiente expulsar os invasores, é preciso que o Ministério Público responsabilize também o Ibama por omissão, por ter deixado isso acontecer, afinal é o órgão responsável pelas unidades de conservação do país. Se o extrativismo em Xapuri está falido, como afirmou a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Dercy Telles, é preciso avaliar as opções concretas de renda que existem para os seringueiros que moram na Reserva.
Concordo plenamente com a crítica da Dercy e acho muito constrangedor para todos os membros atuais e anteriores do Governo do Acre e do Governo Federal conviver com essa crise dentro da Resex Chico Mendes nesse momento. Não acredito que, de uma hora para a outra, os moradores passaram a ser invasores – algo está errado nessa avaliação e somente uma pesquisa poderia esclarecer.
Também acho que existe omissão do Governo do Acre na busca de justiça às outras pessoas assassinadas no mesmo contexto do Chico. É o caso de Ivair Higino, assassinado brutalmente alguns meses antes do Chico. O julgamento dos acusados pelo crime, filhos do mesmo homem que mandou matar Chico Mendes, Darli Alves, só aconteceu 20 anos depois, em agosto passado, em uma constrangedora sessão no Tribunal do Juri de Xapuri, quando foram todos absolvidos. Ficou evidente que há uma guerra na surdina em Xapuri que, se não for administrada, ainda poderá resultar em mais mortes. São muitos os que não aceitaram a criação da Resex Chico Mendes e são muitos os que torcem para inviabilizá-la, inclusive incentivando o gado nas colocações dos seringueiros.
O governo do Estado do Acre, as lideranças do Conselho Nacional dos Seringueiros no Acre, o Ibama no Acre, precisam ser mais ativos na concretização dos sonhos do Chico, que são também seus próprios sonhos. Vejo o desconforto na face de muitos companheiros de Chico em Xapuri com os dilemas que estão vivendo para manter vivas as expectativas do passado e acreditar em um futuro melhor.
Precisamos parar de reverenciar a imagem de Chico Mendes, congelando-a no tempo, e arregaçar as mangas para viabilizar a economia da floresta hoje. Torná-la inspiradora de novos líderes, novas gerações, novas idéias. Estamos congelando seu legado e não transferindo-o para mãos mais jovens e arrojadas que queriam revitalizá-lo, reinventá-lo, recriá-lo de acordo com as necessidades dos gestores da floresta do futuro.
Mito ou inspiração?
Os herdeiros de Chico conseguiram, vinte anos depois de sua morte, o que ele sempre sonhou: reconhecimento, pela sociedade, da existência dos povos da floresta e inserção do tema na mídia nacional. Talvez fique mais fácil, a partir de agora, concretizar o seu sonho completo. Por outro lado, ao tornar familiar o tema, corre-se o risco de simplificá-lo, arredondando arestas, ocultando detalhes, cristalizando imagens e idéias. E, principalmente, reificando o passado e congelando o futuro.
Transformar Chico em um herói mítico é um erro porque oculta a principal contribuição que ele deu à Amazônia, ao país e à humanidade: a idéia de que se pode fazer mudanças estruturais com revoluções pacíficas e a idéia de que se pode inventar políticas quando elas não existem da forma como achamos que deveriam existir. Para dar continuidade a esse legado, é preciso ousar, ser criativo, rever paradigmas e revisar esse legado.
A história do Chico surpreende por ser a história de um seringueiro simples com um sonho grandioso; e um sonho que vai ficando cada vez mais atual à medida que passa o tempo. Mas hoje está evidente que a concretização do seu sonho não depende mais dos moradores das Reservas Extrativistas. Está diretamente relacionada ao futuro da Amazônia e à nossa capacidade como país de assegurar um destino digno a esse valioso patrimônio. Tem a ver, portanto, com todos nós.
Para fazer jus a essa história é preciso inventar outras; é preciso que cada um encontre o seu papel nesse imenso desafio. As bases para um novo momento estão dadas e são firmes. Investir na formação dos gestores da floresta do futuro e apostar na capacidade que terão de reinventar o legado do Chico, adequando-o a um contexto do século XXI, das mudanças climáticas e dos desafios tecnológicos, é o projeto ao qual pretendo me dedicar nos próximos anos. E o seu, qual é?

 

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