O maior conflito armado ocorrido em território brasileiro teve participação fundamental de um grupo de pessoas que, na época, jamais imaginariam que seriam tão importantes no conflito, tanto no desenrolar quanto na conclusão. Os lanceiros negros, grupamento do exército farroupilha formado por escravos convocados para lutar ao lado da revoltosos, desempenhou um importante papel durante os 10 anos da Revolução Farroupilha.

Escravos libertos (ou nem tanto assim) para lutar pelo Rio Grande!

lanceiro-negroA Revolução Farroupilha teve início principalmente pela revolta dos estancieiros gaúchos, descontentes com a política implantada peloImpério Brasileiro que desfavorecia a produção e comercialização do charque e do couro gaúchos enquanto favorecia a produção de nossos hermanos da região do Prata.
E vários destes estancieiros usavam mão-de-obra escrava em suas fazendas. Ao aderir a revolta, o estancieiro convocava seus escravos para lutar ao seu lado, engrossando as fileiras farroupilhas contra as tropas imperiais. Como motivação, o escravos recebiam a promessa de que estariam livres, e o preço da liberdade seria pago com a luta ao lado dos republicanos gaúchos até a definitiva implantação da República Rio Grandense e o fim do conflito.
Além disto, quando uma estância de uma pessoa favorável ao Império era invadida, os escravos eram “libertados” pelos republicanos e convocados para o exército farroupilha. Em pouco tempo, o 1° Corpo dos Lanceiros da primeira linha, criado em 1836, tinha mais de 400 homens a serviço da Revolução, e em 1838 foi criado o 2° Corpo de Lanceiros, desta vez com exatos 426 homens. A maioria era formada por ex-escravos, mas nas fileiras também contavam com mestiços e “índios”.
E não eram soldados comuns, por nunca terem feito parte de um corpo militar antes da Revolução Farroupilha. Muitos tinham grande habilidade em cima de um cavalo, pois já trabalhavam domando animais nas estâncias, enquanto outros eram exímios lutadores com as lanças e facas em punho, além de usarem muito bem a boleadeira. Isto garantia ótima mobilidade ao batalhão e um grande poder destrutivo, o que transformava-os em uma espécie de batalhão de choque dos farroupilhas.
Cláudio Moreira Bento, em seu livro “O exército dos Farrapos e seus chefes”, refere-se aos lanceiros negros da seguinte forma:
“Excelentes combatentes de Cavalaria entregavam-se ao combate com grande denodo, por saberem como verdadeiros filhos da liberdade que esta, para si e para seus irmãos de cor e libertadores, estaria em jogo em cada combate [...] Manejavam com grande habilidade suas armas prediletas – as lanças. Faziam a guerra à base de recursos locais. [...] A maioria montava a cavalo quase em pêlo. [..] Eram armados também com adaga ou facão e, em certos casos, algumas armas de fogo [...] Os seus grosseiros ponchos de lã – bicharás –, serviam-lhes de cama, cobertor e proteção ao frio e à chuva. Quando em combate a cavalo, enrolado no braço esquerdo, o poncho servia-lhes para amortecer ou desviar um lançaço ou um golpe de espada.[...] Eram habilíssimos no uso das boleadeiras como arma de guerra [...]” [1]

As dúvidas quanto à libertação e os direitos dos negros no RS:

Uma questão controversa e que chamou minha atenção quando eu pesquisava sobre o assunto foi justamente a “liberdade” prometida pelos farroupilhas e o tratamento dispensado aos escravos que lutavam pela independência do Rio Grande do Sul. Pois não há um posicionamento claro de que a liberdade era de fato certa ao fim do conflito – no caso de vitória farroupilha – ou se a escravidão seria oficialmente abolida no Rio Grande do Sul ou não. O que sabemos é que o Império venceu, então grande parte dos escravos que sobreviveram ao Massacre na Batalha dos Porongos (calma que já chegamos lá) voltaram a ser escravos com o fim do conflito.
O que temos de certo é que na época o Império chegou a decretar que os escravos que lutavam ao lado dos farroupilhas estariam sujeitos à pena que variava de 200 a 1000 chibatadas, caso fossem capturados. Enquanto isso, os farroupilhas publicaram uma declaração repudiando o decreto imperial e informando que o exército republicano mataria um soldado imperial para cada negro capturado e açoitado. Deste ato podemos ter uma ideia de como os republicanos tratariam os escravos caso a Revolução tivesse êxito. Ou não, já que existe um “desencontro de informações” quanto à um acontecimento particularmente sangrento da Revolução Farroupilha…

A Batalha de Porongos:

Em novembro de 1844, as lideranças farroupilhas e imperiais já costuravam o fim da guerra, favorável ao Império, mantendo o Rio Grande do Sul como província. Mas havia um ponto em particular que estava atrasando o acordo: a libertação dos escravos que lutaram ao lado dos farroupilhas.
lanceiros
O Império não aceitava a libertação destes escravos, pois temia que este fato desencadeasse movimentos abolicionistas Brasil afora. E algumas lideranças farroupilhas preferiam a libertação dos escravos, colocando inclusive como uma das exigências para o fim da revolta. O impasse teria sido resolvido na Batalha de Porongos, quando soldados do exército imperial, liderados por Francisco Abreu, o Moringue, e autorizados pelo Barão de Caxias, atacaram de surpresa os farroupilhas que estavam aguardando ordens acampados na curva do arroio Porongos, que fica no município de Pinheiro Machado.
Além dos farroupilhas “normais” – que faziam parte de outros destacamentos do exército farroupilha -, no grupo estavam cerca de 100 lanceiros negros que estariam desarmados e foram dizimados pelos imperiais. Os poucos que restaram vivos foram vendidos no Rio de Janeiro.
Quanto às controvérsias a este fato, dizem que David Canabarro – um dos líderes farroupilhas – desarmou os lanceiros e piorou a situação de defesa do grupo. Mas este fato não tem uma confirmação histórica, portanto nós aqui não podemos afirmar que Canabarro fez qualquer acordo com os imperiais para que ocorresse o massacre.
O que sabemos é que depois de Porongos o grupo dos lanceiros negros deixou de ser um “atraso” nas conversas diplomáticas, e em fevereiro de 1845 o acordo pondo fim às disputas foi definitivamente costuradoentre as partes e o Rio Grande do Sul deixou de ser considerado uma “província revoltosa”.
À custa dos bravos lanceiros negros…

Fontes:

Os Lanceiros Negros na Revolução Farroupilha, texto do Historiador e deputado Raul Carrion. A citação[1] eu tirei deste texto.
- “Escravos Farrapos“, texto da Revista de História.
- “Os Escravos que lutaram em troca de liberdade“, texto de Guilherme Justino para a UFRGS

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