FUGINDO DO CATIVEIRO

100_9481.JPGDr. Vicente Cascione

Se as palavras e gestos sempre correspondem ao pensamento de cada um, os seres humanos poderiam viver em relativa paz.

Creio que essa verdadeira paz, a única possível, é compatível até mesmo com as divergências, desencontros, inimizades e disputas entre pessoas. A outra, a paz imaginária e ideal, habita somente os limites da utopia.

A ocorrência de conflitos entre os homens é inevitável. Assim, jamais haverá uma paz absoluta.

Ninguém encontrará no convívio dos animais selvagens, onde o instinto da sobrevivência impõe uma luta permanente. Não se pode esperar que a virtude imobilize o gesto da fera faminta diante da presa que lhe mantém a vida. Nem se exigirá, do fraco, a coragem para enfrentar o mais forte. Nem terá a ave de rapina o bom-senso que lhe suste o golpe mortal.

Os animais vivem com seus instintos e convivem entre eles conhecendo a individualidade dos inimigos e dos inofensivos. Todos sabem o que esperar de cada um.

Mas os homens não têm essa paz relativa porque vivem sob a angústia do desassossego ao coexistirem submetidos a uma dúvida permanente.

Por trás das palavras e gestos quase sempre se ocultam as intenções. Na trama do relacionamento humano o indivíduo vai às cegas. Às vezes adivinha, quase sempre se engana.

A vida impõe uma procura incessante, como se fosse um jogo secreto, em que as pessoas de boa-fé, costumeiramente, perdem. A convivência é um eterno baile de máscaras.

Na intrincada selva em que a sociedade humana sobrevive não existe a paz da certeza. Os esquilos podem ter a peçonha das serpentes e os leões brincam com os novelos de lã. As águias trinam nas ramagens e os bem-te-vis voam em espirais de mau agouro.

Em resumo, conviver não é fácil. O gesto aparentemente nobre pode esconder vagos egoísmos. A suspeita de hipocrisia anula o merecimento dos homens de bem. A justa acusação é considerada uma calúnia, e um ato de coragem um acesso de loucura ou vaidade. Omissão e covardia são vistos como prudência ou bom senso.

Olhos nem sempre têm a transparência que permitiria a visão interior de cada um. Palavras muitas vezes são ocas como bolas de sabão. Inconsistentes e voláteis, elas servem a dissimulação.

É difícil encontrar uma frase, escrito ou expressão como sinais autênticos da individualidade verdadeira.

Talvez porque a liberdade reprimida resuma a história dos seres humanos, as pessoas estão cada vez mais condicionadas a se trancarem dentro de si mesmas, impondo-se a mais torturante prisão que é o medo de assumir suas verdades.

Benditos os que conseguem cumprir a vida fugindo desse cativeiro. Se todos fossem capazes de ser assim, e sempre, não haveria desilusões, desenganos, traição, decepções, enfim todos esses sentimentos que nos machucam muito mais do que os ferimentos causados pelo enfrentamento aberto e franco nos embates inevitáveis da convivência. Na luta leal é possível haver a paz relativa que, no entanto, se extingue quando o confronto da vida ocorre nas trevas da incerteza contra dissimilados e desconhecidos.

Dr. Vicente Cascione é Advogado Internacional e professor (decano) de Direito Penal na UniSantos e foi deputado federal.