segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Conto

Carta O Berro..............................................................................................repassem
 
H I A T O S
              

            PRIMEIRO MOVIMENTO


            PAULA:
            Eu bem que poderia descobrir um calmante e pingar umas gotas naquele chá que a Dona Vera toma aos baldes. E já que estou sonhando, eu gostaria de ganhar uma Honda, no Natal.
            Não sei por que, mas as coisas hoje andam devagar demais. Nem sei se quero ver o Caio, à noite. Ando meio sem paciência pra escutar debate na USP.
            O Flávio tem mais imaginação. Ruim eu ter deixado o Flávio, enquanto ainda gostava dele. Mas não agüento gente que fala e não realiza (que não me quer).
            A Mara. Ir pra casa dela. Mara é força e brilho, como o Caetano e o Gil. Ou a Clarice Lispector.
            Mas se ela fuma, ou bebe, fica meio estranha (começa a chegar muito perto). Por que uma pessoa descontrola, perde o eixo de repente? Eu não sei (não gosto).
            Bem diz o Nick, “quem queima fumo perde o rumo”.
            Detesto o ato de fumar. De fumar qualquer coisa, mesmo cigarro. Adoro o Nick... Quem será ele, por trás da cortina esfumaçada do Marlboro?

            CAIO:
            Acho ruim ser magro.
            Acho horrível esse nariz.
Mas se tem um quesito em que eu sempre ganho é nesse ar de  peixe-fora-d’água, de marciano despencado da nave.
E na in tel igência, ufa.

            PAULA:
            O jeito que eu mais me gosto é bronzeada, de camiseta e calcinha. Tenho umas pernas lindas.
            A primeira coisa que vou fazer, na casa da Mara: contar pra ela e Nick a briga com Dona Vera. Adivinho que vai ser a maior encrenca pra sair de casa, hoje.
            No livro do Mauro is tem uma personagem (Claire?) que apelidou a mãe de “Clitemnestra”. Achei perfeito e comprei a estória. Mas Dona Verusca pensou que fosse algum palavrão novo. Imagine se alguma vez ela ouviu falar de Clitemnestra?
            E Agamenon?
            Porra, onde é que foi parar minha boina azul?

            CAIO:
            Acho que vou pra casa da Mara. Minha avó pensa que eu tenho “um caso” com ela. E vou tentar explicar? Não vale a pena.
            Às vezes eu gosto de falar “não vale a pena”, porque dá um alívio.

PAULA:
Quem é que resolve entrar no banheiro justamente agora?
Parece de propósito, só pra me atrasar.
Essa estória de ser a maldita da família já está enchendo.
Take it easy, enquanto isso procuro a boina mais um pouco? Não. Melhor ficar lendo no corredor, de olho na porta.

CAIO:
Comentar com Paula o “Retrato do Artista Quando Jovem”.
Ela gostou, será? Eu, mais ou menos. Achei um pouco devagar.
É claro que Paula vai estar na casa de Mara e Nick. Onde mais?

PAULA:
Então Clitemnestra vai sair para fazer comprinhas, que ótimo. Finjo que estou no quarto estudando e depois deixo recado com a empregada. Melhor assim.
E Agamenon, o que vou dizer a ele? Paizinho querido, me conte uma daquelas estórias cabulosas do Hospital. E agora uma graninha, um beijo.
Mas, antes, um banho.

CAIO:
“Você sabia que o Joyce foi excomungado pelo Vaticano? Minha irmã tem o Ulisses, você querendo eu empresto.”
Paulita, meu amor para sempre, tudo isso vou dizer pra você, quando a Mara fechar a porta do quarto pra gente ficar, sem pressa... Sem pressa, Paulita, e nada de luz acesa, como nos interrogatórios.

PAULA:
Às vezes eu me pego achando o Caio muito lindo. Agora: do que adianta escolher uma calcinha bonita, se ele não perdoa nem a luz do abajur?

CAIO:
Sei muito bem como Paula é gostosa. Tenho mãos para quê?

PAULA:
“Os olhos são as únicas mãos que vão ficando a alguns de nós”, é o texto que mais gosto de falar, no espetáculo. É também uma das coisas mais bonitas que o Cortázar já escreveu.
            Mas eu diria a Caito: com as mãos no escuro, meu lindo, tanto faz se a calcinha é azul ou cor-de-laranja-furada-nos-fundilhos, como as de Clitemnestra.

            CAIO:
            Sair logo, antes do Velho chegar.
            O Velho. É um cara que (desprezo?) não deu certo.
            É um cara compactuante.

 

            PAULA:

            Acabou.

            Dona Vera já percebeu que estou armando pra sair. Vai me chamar daqui a pouquinho, pronta pra dar o bote.

            Tomar um banho bem demorado.
            Enquanto isso Agamenon fala com ela: porque os jovens precisam de liberdade, etc. etc., estão na idade de se divertir, pá pá pá, como sempre.
            Esse brilho sabor tutti-frutti deixa os lábios bem delicados...
            O Caio vai gostar, será?

           
            CAIO:
            Em que boa hora resolvi voltar e trocar de camisa.
            Agora não tenho como fugir do Velho.
            Por que ele não ficou mais dois minutos, only, no bar?
            Parece destino, mesmo. A eterna briga de todos os sábados. Lá vou eu.

            

            SEGUNDO MOVIMENTO

PAULA:
            – Mamãe, por favor, eu já disse que tenho ensaio. Você não pediu pra falar a verdade? Pois aí está, é toda sua.
– ...
– Então: eu bem que poderia mentir, dizer que ia pra Faculdade, mas prefiro jogar limpo.
– ...
– Escute aqui: esse... “teatrinho”, como você chama, é problema meu.
            – ...
            – Pois eu não passei no vestibular, como você queria? Então...
            – ...
            – Ao menos lá no grupo de Teatro as pessoas me tratam como gente, coisa que não acontece aqui em casa.
            – ...
            – Eu não estou falando do Agamenon; não começa a jogar cortina de fumaça pra cima de mim.

CAIO:
            – Pai, eu não posso conversar agora. A mamãe conta pra você, tá bom?  Vou usar o carro. Dá licença pra eu manobrar?
– ...
– A Mara pagou a gasolina.
– ...
– Não, é que eu levei o gato dela no veterinário. Porra, pai, é claro que ela foi junto.
– ...
– Eu sei, mas depois nós fomos tomar um chope, eu, a Mara, o Nick e o veterinário, que é amigo deles.
– ...
– Só nós quatro. Com o Poncho, cinco.
– ...
– É o gato, ora.

PAULA:
– Quem mandou você ligar pra Mara?
– ...
– E daí que ela é casada? Você só pensa nessas coisas?
– ...
– Não dá pra fazer um esforço, não dá pra perceber que algumas pessoas vivem longe desses preconceitos sujos?
– ...
– Isso! Bate mesmo! A violência é uma arma desprezível, própria dos fracóides de merda. A verdadeira força não precisa de porrada pra se firmar. Agamenon nunca me bateu.
– ...
           – Eu sei que ele é meu pai, e daí? Chamo do jeito que eu quiser.

Há meses, num delírio de febre, Paula sonhou-se Ifigênia. Agamenon tomava sua temperatura, ouvia o coração levantando-lhe a blusa, espetava a agulha na veia.
Ifigênia voltava o rosto, com a dor que era a morte em um segundo, enquanto ele murmurava desculpas, Paula, Paulita, amor meu.
Agamenon era lindo e fraco, também ele sucumbindo às teias da megera-mãe.    Conseguiriam um dia expulsar Clitemnestra e tomar posse, só Ifigênia e Agamenon, do duplex? Ou os deuses exigiriam que Agamenon sacrificasse a filha...?

Sonhei tanta bobagem, dissera Paula, ao acordar.
Agora, sim, tinha um motivo a mais para adotar os nomes gregos, que caíam como uma luva. Dona Vera não suportava ouvi-los; mais uma razão, portanto, para continuar com o jogo.
Por isso:
– A-g-a-m-e-n-o-n. Digo e repito Agamenon quantas vezes quiser. Afinal, ele é meu pai. Não sei como o coitado consegue te agüentar.
– ...
– Ele é muito melhor que você, Clitemnestra... Mas nem tudo está perdido. Sempre é tempo de crescer. E se você quiser mesmo começar, sugiro “Hair.”
– ...
– “Hair”, Clitemnestra. Let the sunshine in.

CAIO:
– Pai, eu não quero discutir.
– ...
– Então vou a pé. Mas pensei que esse carro fosse meu, também.
            – ...
            – Pelo menos nunca me meti num poste.
            – ...
            – Não adianta. Eu vou mesmo pra casa da Mara. Dá licença?

            PAULA:
            – Quer dizer: deixe o sol entrar... Sabe como? Ah, claro que não, claro que não.
            – ...
            – Então, adeus. Mas não espere que eu volte, como da outra vez.
            – ...
            – Era isso que você queria, não...? Me pôr pra fora de casa.
            – ...
            – Por que você não assume sua covardia? Assim, ficaria mais fácil encarar essa máscara horrível no espelho. Já pensou nisso?
            – ...
            – Não adianta, agora eu vou mesmo. É tudo tão inútil.

            CAIO:
            – Imagine, pai! A Mara nunca entrou pra nenhum partido.
            – ...
            – E daí? O que ela pensa ou deixa de pensar não é da conta de ninguém.
            – ...
            – Eu nem sei; a gente não conversa sobre essas coisas.
            – ...
            – Ora, do que, porra. De livros, do ensaio, do espetáculo... O que mais? Não, de jeito nenhum. Eu até acho a Mara e o Nick um pouco... Um pouco desligados demais para o meu gosto, sabe?
            – ...
            – Tá, tá, tá bom.

            PAULA:
            – Já chega, Dona Vera. Eu não caio mais na sua teia de aranha (Será que vou pra casa da Mara, de vez? Mas pra dormir onde? Na sala? Por que não?). Quer soltar a porta do elevador, please? Estão chamando, no andar de baixo.
            – ...
            – E daí, eu não me importo com escândalos. Oh, sim, um condomínio familiar, isso aqui? É um cortiço muito mal transado, bem no estilo da classe média-medíocre. Ai, solta logo essa merda... Ufa.

CAIO:
– ...
– Não me venha com essa. Achei tremendamente sujo o que vocês fizeram no CRUSP.
– ...?
– É, vocês, mesmo. Nesses tempos de obscurantismo, quem não reage compactua. A estória só tem dois lados e eu sei muito bem qual é o seu.
– ...
– Ah, agora fui eu quem provocou? Por mim, já teria ido embora. Tchau.

 

            TERCEIRO MOVIMENTO


           CAIO finalmente o carro, trânsito de sábado à noite, irritação que desaparece à lembrança de uma outra noite, de estréia, um mês atrás, quando foi tomar vinho com Paula:

– Meu Deus, Paulita, pena que acabou.
– Nada, bobo. Agora é que a coisa começa.
– Mas aquela beleza que correu entre todo mundo, na hora do espetáculo, será que repete na próxima vez?
– Diz a Mara que sim, só que de um jeito diferente.
– Tomara. Quer mais vinho, minha linda?
– Não. Tenho de ir pra casa, Caito.
– O que será que a Mara está fazendo agora?
– Dormindo, acho.
– Ou então comemorando, com Nick.
– Pode ser.
– Porra... Tanto tempo de ensaio e então a estréia, uma hora de espetáculo e kaputt, acabou, the end.
– Pois a Arte é assim mesmo, Caito... Escuta, você viu a Clitemnestra morrendo de orgulho, na platéia? Pois ela vai acabar comigo, quando eu chegar em casa.
– Não acredito. É capaz de hoje ela dar uma trégua.
– Sei! E o seu pessoal, não foi por quê?
– Nem convidei. Eles não entenderiam, mesmo.
– Hum, que amargura, garoto.
– Não me chama de garoto. Não gosto.
– Mara e Nick te chamam assim.
– Mas é diferente. É carinho e não gozação.
– Desculpa, Caito.
Claro que desculpava, claro que tudo naquela primeira noite de Paula e delírios rabiscados em guardanapos, Paula de repente já não precisava ir para casa, era só tel efonar dizendo que não tinha mais ônibus, e que tal se visitassem Mara e Nick?
– Mas e se eles já estiverem dormindo?
– A gente dorme também. Vamos?
A Avenida Paulista deserta, o vento gelado nos cabelos, Paula encolhendo-se como um papelzinho de seda amassado.
– Veste a minha jaqueta.
– E você?
Ah, que bom caminhar assim até a Vila Madalena, bom encontrar a luz acesa, Mara e Nick ainda acordados, tomando vinho branco (que nem a gente fez agora há pouquinho, Paulita), o gato Poncho no colo de Mara aconchegada em Nick, a noite e o fogo
na lareira, Paula recolhendo os copos para lavá-los na cozinha, tudo ali, tanta magia espalhada, era estender as mãos e pegar. Tudo tão inteiro.
Caio e a primeira vez com Paula, medo que alguma coisa desse errado, mas como poderia, já que Mara e Nick haviam saído de mansinho, a porta fechada suave e só Paula devagar e nua contra o fogo, as sombras, escuros flashes pelo teto e paredes, Poncho
dando tapinhas nos cordões dos tênis jogados no tapete, tudo bonito e assustador num tempo único.

– Tá bêbado, corno? – grita o motorista do ônibus que Caio acaba de fechar, com seu pobre fusquinha azul.
– Porra, desculpa. – E Caio ri, presa da memória apaixonada que o roubou da hora presente, que por pouco não o matou, com essa molecagem. Era bom lembrar aquela noite e melhor ainda chegar à casa de Mara e Nick, uma vez mais.

PAULA, andar de robozinho pela calçada, o sapato novo incomodando, mas ficava tão chique.
O pensamento na palavrinha pu-bli-ci-da-de, idade, cida, idadecida, ida, lida, dia, cidade, ade, um H e eu teria o inferno, inferno lembra Dona Vera, era, cera, dera, fera, gera, hera, lera, mera, Nera, um abecedário inteiro de nada, essa minha mãe é mesmo um
karma. Clitemnestra é a própria mãe desnaturada.
Olha que menino bonito. Eu adoro gente bonita e limpa. Ah, se o Caio me pega pensando assim, agora que anda metido até a alma (o rabo) nas reuniões da Faculdade, resolvendo os problemas do povo brasileiro. Bom, eu até respeito, mas não ponho fé.
O Caio é um idealista.
É bonito ser i-d-e-a-l-i-s-t-a, se bem que inútil.
Às vezes eu me preocupo com o Caio. Se bem que os caras do Movimento não vão dar nada perigoso pra ele fazer; já perceberam que ele fala demais, será? Ou Caito não me conta tudo (será?).
Caito. Ao menos ele não me olha como os outros, como se fosse devorar uma lasanha.
Ah, que bom chegar à Rua Harmonia.
O fusca do Caio está na porta, melhor ainda.
Mara já me viu, da janela, enquanto abro o portão.

           

          

           QUARTO MOVIMENTO


            A casa de Mara e Nick era sempre o aconchego. Noite de lua cheia e alguma nuvem embaçando, panquecas-vinho-fumo-cigarros, Paula e Caio pela primeira vez um banho comprido e promessas de gozo, a cama já pronta na sala, o gato Poncho na lareira,
            pequeno-novelo-amarelo-claro, como a calcinha de Paula no varal do banheiro.
            Paula: – Que horas são? Quase duas? Que bom não ter que ir pra casa, pra lugar nenhum. Desta vez saí mesmo. É sério, agora não volto mais.
            E a Paula, para quem tudo ali era harmonia, ocorreu pintar uma aquarela com aquele cenário que a seus olhos ganhava em magia e dimensão, embora a sala comum, os objetos de cena baratos, o vinho razoável.
            (Perto de Mara, até a vulgaridade ganha um toque original. E perto de Nick? Se Nick quisesse, eu... Acho que Mara não se importaria... Não sei.)
            Caio: – Gente, e uma fumadinha?
            Paula: – Quem queima fumo perde o rumo.
            Caio: – Às vezes sim, às vezes não... Pois eu quero mais é me soltar.
            Paula nem ouve a resposta e teimosia de Caio, mas ouvirá Mara dali a pouco, dizendo a Nick que alguém chamado Horácio já deveria ter chegado.
            Paula: – Quem é Horácio? Eu conheço?
            Não, Horácio era um amigo, que estava a caminho.
            Paula: – E ele vai dormir aqui? Claro, que pergunta, a minha. Já é de madrugada e... Ele vai passar alguns dias? Ah. Então, posso ir pra casa da minha irmã. Acho que não vai ter acomodação pra todo mundo, não?
            Mas Mara sorria, dizendo que ficasse, que tudo se ajeitaria.
            Então Paula, em pleno alívio:
            – Obrigada, mas eu não quero atrapalhar, tá?
            E teve a impressão que Nick se aborrecia... Com sua presença ali? Com Mara, que achava melhor tel efonar para saber de Horácio, que estava tão atrasado? E Nick meio ríspido dizendo que não, o jeito era esperar, não se podia fazer muito mais que
           isso.Então Paula ganhou a certeza de que entre Nick e Mara corria algo incompreensível, mas não era a primeira vez que os ouvia conversar assim, numa espécie de código indecifrável, embora usassem palavras comuns como “você há de ser sempre a...”
            Sempre o quê? Por que Caio resolvia falar justamente agora?
            – Quer fumar, Paulita?
            – Não.
            – E você, Mara... Nick? Então, pito sozinho.
            Paula e a tentativa de um olhar cúmplice com Mara.
            Claro que o garoto ia também recitar, sozinho, o discurso anárquico-romântico de sempre, repetir pela enésima vez a estória da invasão do CRUSP pelos gorilas, os detalhes absurdos:
            – Paulita?
            – Hum?
            – Eu já te contei que na invasão do CRUSP os homens apreenderam um livro sobre Cubismo, pensando que tivesse a ver com Fidel?
            – Já, Caito. Você já me contou.
            Mara levantando-se, pondo uma fita de flamenco no velho aparelho de som e voltando para junto de Nick.
            Caio, a corda toda:
            – Mara, você gosta do Brecht? E se a gente montasse alguma coisa dele, depois da temporada?
            Paula: – Ele está engavetado, Caito, proibido.
            Caio: – Eu sei, mas mesmo assim, Paulita. Seria um ato revolucionário.
            Paula adiantando-se, precisava mesmo salvar a pátria, mudar o rumo da conversa. Detestava quando Caio, divagando, fazia papel de besta, mesmo na frente de Mara e Nick, que sabiam que ele era um menino de muito valor, não? (Ai, ai, ai, lá vai o garoto   
           despejar as doutrinas, com casca e tudo.)
            Paula: – Caito, por que a gente não muda de assunto? A Mara e o Nick não são ligados a... como se diz? A essas... coisas.
            Caio: – Ao Movimento.
            Paula: – Isso.
            Caio: – E você, por que não se engajou em nada, Paulita ?
            Paula incomodada, a noite começa a fugir do roteiro imaginado. E essa conversa do Caito...
            (Mas nem Mara nem Nick parecem atentos ao meu garotinho que, aliás, está ridículo. Droga, por que Caito não é como Nick? Por que não se recosta na almofada, com os olhos semicerrados, cara serena-madura-bonita, ouvindo Paco de Lucia? Por que     eu              mesma não faço isso?)
            Caio: – Tem uns lá que não são de nada, sabe?
            Paula: – (forçado ar distante) Quem?
            Caio: – Uns caras da Sociologia. Não agüentam uma porrada. Um bando de cagões.
            Paula: – Mas você não disse que todos eles eram incríveis?
            Caio: – Errei. Agora já abri os olhos. Claro que muitos se salvam. São puro cerne, como se diz por aí. Com esses, eu pulo de cabeça em qualquer onda.
            Paula: – Sei (é engraçado, mas também angustiante, ficar ouvindo Caio e ao mesmo tempo observar a sombra de Mara e Nick na parede, no canto oposto da sala, enquanto ambos falam de um tal Cinci e Pirandello. Mas é como se falassem de outra coisa,   
            porque se olham de um jeito e comentam de repente que o tempo está passando).
            E como para Paula o tempo é um pássaro apenas esboçado, sem endereço nem rota, ela desiste da carona e volta a ouvir Caio.
            – Você leu a carta da Dilma Alves, no Le Monde, Paulita? Um amigo meu conseguiu uma cópia, você querendo eu empresto. Porra, você nem está me ouvindo.
            E Caio, olhar teatral de criança incompreendida, reacende o diminuto cigarro.
            O velho aparelho de som desliga sozinho no final da fita.
            Um grupo chega pelo portão e Mara abre a cortina:
            – Mas Horácio não vinha sozinho?
           

            QUINTO MOVIMENTO


            Nos segundos de infinito horror, no momento em que tudo fica suspenso e as linhas finalmente se enroscam para compor a malha de simultâneos hiatos, um imaturo escritor fotografa os flashes que passam num instante interminável pelos olhos dos personagens.

            NICK olha Mara com uma já inútil reprovação: por que não havia ela concordado em dispensar aquelas duas crianças, antes que a coisa ficasse perigosa demais? Já não tinham recebido tantos tel efonemas da chorosa-furiosa Dona Vera, ordenando que
           parassem de receber Paula? Por que Mara, conhecendo muito bem o Q.G. onde Paula vivia, tinha ignorado o risco, os avisos?

            MARA responde com um também inútil olhar de perdão, mas isso não importa nem adianta, agora.

            PAULA não pensa em nada. Apenas tenta sufocar uma voz que de longe sopra, talvez, a explicação de tudo. Mas Paula consegue, ao menos por enquanto, obliterar o que não quer ver. Nem ouvir.

            CAIO se lembra por um instante do Encouraçado Potenkim, a seqüência da escadaria de Odessa e o carrinho de bebê que deslancha pelos degraus, como acontece agora com a bicicleta de Nick, que um dos homens tira do caminho com um pontapé. Então  
           Caio recorda um trecho lido já-não-sabe-onde sobre Danton, uma crônica que falava de Sandino, Sacco e Vanzetti e uma cena de Roda Viva. Caito quase se sentiria um herói, mas não sabe ao certo como agir ou pensar. O medo lhe rouba todo o espaço. Se
           pudesse acordar, se ao menos e mais pudesse acordar, ele se diz, infinitamente, piscando os olhos míopes para aquele quadro que não vai mudar.

            Num apartamento duplex, os que Paula chama de AGAMENON e CLITEMNESTRA discutem:
            A solução encontrada não teria sido um tanto, digamos, excessiva? Talvez, mas já se sabe... Não há mais como deter os fatos, pensam, eufemisticamente. A essa altura a coisa deve estar a pleno vapor, por assim dizer.
            A moça, a tal Mara, já não fora advertida antes, e tantas vezes? – comenta Do­na Vera com o marido, que responde com um “sim” e um olhar cansado onde uma dúvida, quase uma culpa, tenta se instalar. Mas enfim era preciso pôr um paradeiro naquela fase de
            Paula. Era preciso livrá-la o quanto antes da influência daquele casal, que ameaçava não apenas a inexperiente-ingênua Paulita, mas todos os jovens cheirando-a-cueiro que freqüentavam a casa e o tal grupo de Teatro. Apenas, ficava a dúvida: a moça, a tal       
            Mara, não era contratada da Secretaria de Cultura?
            Sim, claro – confirma Dona Vera. Aliás, é nesses Órgãos do Governo que eles se infiltram. O marido acaso não se lembra daquele jornalista que trabalhava na Prefeitura? Pois é assim que estamos, já não se pode confiar em ninguém.
            Sem dúvida – o marido concorda, recordando-se vagamente de uma tal Sara, que atendera num porão, há dias. Sim, qualquer jogo para salvar Paula dessa horrível probabilidade. Qualquer ato, sacrifício ou pessoa. Mesmo a tal Mara, que vira uma vez, na
           estréia da pecinha de Teatro. Bonitinha, ela.

            SEXTO MOVIMENTO

            Paula olhos arregalados, os homens revirando armários, Caio um gesto trêmulo, o baseado jogado às pressas na lareira que ele mesmo ajudara Nick a construir, meses atrás.
            Nick e Mara, por enquanto, mais surpresos que assustados. Nick se adiantando e o primeiro tapa. Sthendal-Cortázar-Nietzche arrancados da estante e Caio:
            – Por favor, senhores – numa voz que parece a de um homenzinho valente.
            – Você cala a boca, moleque; o nosso caso é com eles.
            Três horas da madrugada, um vizinho que acende a luz, o primeiro grito sufocado de Mara, o carro que parte silencioso como chegou, levando mais dois passageiros.
            Paula quase à histeria, olhando a casa já vazia de Nick-Mara-os homens.
            Dona Vera que tel efona:
            – Filhinha, você está bem?
            Caio engolindo um riso nervoso, cãibras:
            – Vai ficar tudo bem com eles, Paulita. A Mara e o Nick não são ligados a nada. A nada mesmo.
            E a lucidez, num segundo: Paula a mão nos olhos à chegada da compreensão que ainda tenta evitar. Mas agora não há como deter a voz, que já se insinuou em sua distraída in tel igência.
É algo que dói e que a faz tão perto daqueles homens e quase inimiga de Mara. É como se sua presença ali fosse um pouco o carro que chega e parte na madrugada.
Mas, então... A briga daquela tarde, a vingança de Clitemnestra, a traição de Agamenon... Compreende que estava enganada, que é Mara a Ifigênia, é ela que Agamenon sacrifica para que os ventos soprem e levem Paulita de volta a seus braços, tudo se
entrelaçando como se num mesmo bloco, na mesma roda que gira e emplaca os inseparáveis atos isolados.
            De novo o tel efone e Caio se adianta para atender, pensando que se for alguém perguntando por Horácio, ele dirá que não:
            – Não tem ninguém aqui com esse nome... Quem está falando é o Caio. Espere aí. Escute, acho que Horácio não virá. Levaram Mara e Nick. Não sei, eu não sei mesmo. De nada.
            – Nada – Paula repete, só para si, pensando que pode ser aí que Mara e Nick estejam, agora. Num infinito nada. É esta a imagem mais próxima que consegue para a palavra que não ousa pronunciar.
fim

[Este conto de Yara Camillo faz parte de seu livro, “Volições” (Massao Ohno Editor, 2007), e também de “Hiatos” (RG-Editores, 2004), ambos ilustrados por Wilson Neves.]

***

-----Anexo incorporado-----

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