quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Traição

Brasil

Kennedy Alencar: como José Serra traiu Aécio Neves e o PSDB

Na primeira metade de 2009, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso selou um acordo entre José Serra e o então governador de Minas Gerais, Aécio Neves. Garantidos alguns compromissos, o mineiro seria vice de Serra, que governava São Paulo naquela época.
Por Kennedy Alencar, FSP e RedeTV
Fiador dos compromissos, FHC testemunhou Serra rompê-los. O primeiro deles: Serra não quis participar de reuniões prévias pelo país, nas quais o PSDB ouviria seus dois pré-candidatos e depois decidiria quem disputaria o Palácio do Planalto.
Líder disparado nas pesquisas, Serra julgava a ideia uma forma de miná-lo politicamente. Mas Aécio queria uma saída para dizer ao eleitorado de Minas por que aceitaria ser vice do governador paulista.
Outro compromisso era afirmar com todas as letras que, se eleito, Serra patrocinaria novas mudanças constitucionais para que Aécio fosse o próximo da fila. Pelo acordo, Serra articularia a aprovação de projetos no Congresso para acabar com a reeleição e reinstituir o mandato de cinco anos.
Aécio sempre demonstrou pouca crença na capacidade de, sentado no Planalto, Serra abrir mão da possibilidade de se reeleger. Mas FHC dizia a Serra que era importante que ele se comprometesse com essas alterações a fim de tranquilizar Aécio e Minas. O final dessa história é sabido.
Entre setembro de 2009 e fevereiro de 2010, a folga sobre Dilma nas pesquisas deu a Serra a ilusão de que poderia ignorar os apelos para assumir a candidatura e fazer concessões a Aécio. Ele não aceitou as cobranças do PSDB e do DEM para admitir que era candidato e montou uma estrutura de campanha centralizada e distante dos aliados.
Esticou a corda até junho para tentar obter a companhia de Aécio em sua chapa, mas estava tão fraco que não teve como enfrentar a resistência dos democratas à escolha do senador Álvaro Dias (PSDB-PR) para vice. Ao explicar as razões de aceitar o pouco conhecido deputado federal Indio da Costa (DEM-RJ) como companheiro de chapa, Serra admitiu que a questão estava encaminhada em outro sentido, mas não havia dado certo.
A biografia respeitável, a tenacidade com a qual se jogou na disputa e a assimilação de um discurso conservador que destoa de suas próprias ideias não foram suficientes para levar o tucano à vitória. Serra quis ganhar sozinho. Colheu o que plantou.

Editorial do Jornal Brasil de fato- 2 nov- 8 nov
Vitória ! E Agora?
 
O que os movimentos sociais podem esperar do governo de Dilma Roussef, que inicia em janeiro de 2011? Nada além daquilo que foi o próprio mote da sua campanha eleitoral: a continuidade do governo Lula. Não há motivos para duvidar que a mulher que derrotou o tucano José Serra, nessas eleições, não meça esforços para dar continuidade à política econômica do atual governo, tentando promover crescimento econômico com distribuição de renda.  Até onde isso será possível, sem atingir os interesses das grandes fortunas, que também foram beneficiadas por essa política econômica, e sem promover as reformas estruturais na economia e na política, essenciais para impulsionar a distribuição da riqueza em  e consolidar uma democracia em nosso país? Ir além das políticas assistenciais, um imperativo nesse momento, significará confrontar os interesses dos que monopolizam a renda e a riqueza brasileira.
A presidenta eleita assegurou, durante a campanha eleitoral, que a  reserva petrolífera do pré-sal  pertence ao povo brasileiro e a riqueza gerada será utilizada para erradicar a miséria e em investimentos na área sociais da saúde, educação e saneamento básico. Enganam-se os que pensam que as transnacionais do petróleo e o capital internacional irão respeitar os 56 milhões de brasileiras e brasileiros que votaram a favor dessa proposta política. A rapinagem internacional encontrará em setores da elite brasileira, tão bem explicitada em torno da candidatura do tucano derrotado, o apoio necessário para tentar apoderar-se de mais essa riqueza natural brasileira. Não faltarão experts em economia, jornalistas, comentaristas políticos, parlamentares e lideranças partidárias defendendo, sempre com a empáfia do conhecimento das elites, que  o pais não tem condições e nem capacidade para gerencias essa riqueza petrolífera. Melhor será, de acordo com o aprendizado de 500 anos dessa elite nacional entreguista, deixar que os grandes grupos econômicos internacionais explorem essa riqueza brasileira. A presidenta Dilma Rousseff, cumprindo sua promessa eleitoral, terá uma oportunidade histórica para derrotar esses setores entreguistas das nossas riquezas e assegurar ao povo brasileiro o pagamento de uma dívida social que perdura à cinco séculos.
Dificilmente a candidatura de José Serra teria o êxito de disputar o segundo turno eleitoral se não fosse o desavergonhado e imoral suporte que recebeu dos grandes grupos de comunicação. Estes tornaram-se o grande partido político de oposição ao governo Lula. Aproveitaram-se do período eleitoral para fazer uma verdadeira luta de classes, em defesa de suas bandeiras políticas mais conservadoras e direitistas. Não hesitaram em adotar candidaturas que se dispunham a fazer coro aos ataques ao governo e à sua candidata, em troca de alguns minutos de exposição nos noticiários.
Já não é mais possível pensar no fortalecimento da democracia sem mexer no oligopólio das comunicações em nosso país. É bem vindo o Plano Nacional de Banda Larga, um serviço publico que irá democratizar a informação através da internet e. E, felizmente, alguns estados já estão discutindo uma legislação própria que assegure um controle social sobre os meios de comunicação, como estabelece a Constituição Federal de 1988. Mas é preciso enfrentar os grupos empresariais da comunicação, seis ou sete famílias, que monopolizam a produção e a divulgação das informações. Não se trata de censurar a imprensa. Mas, sim de assegurar o direito á informação ao povo brasileiro. Direito que está acima dos interesses particulares dos proprietários dos meios de comunicação. Este poderio, não enfrentado pelo governo Lula, precisa ser confrontado com as vozes vindas da conferencia nacional de comunicação e com uma legislação apropriada e atualizada, que atenda os interesses  da sociedade brasileira.
As atrapalhadas do poder judiciário, durante o processo eleitoral, apenas atestam a necessidade de promover mudanças  nessa esfera do poder  político. O Brasil deve ser um dos únicos países do mundo aonde o título de eleitor não é documento suficiente para o cidadão votar. Por indefinição do Supremo Tribunal Federal (STF), milhares de eleitores votaram em candidatos que não sabiam se estavam aptos ou não a receber esses votos, por estarem incluídos no projeto de lei “ficha suja”. Votaram e tiveram seus votos anulados por decisão do poder judiciário. Ver um dos ministros do STF, Gilmar Mendes, receber um telefonema de um  dos candidatos, José Serra,  durante a votação da Corte, para interferir nessa decisão, foi o ápice dessas atrapalhadas. Reformular a estrutura do poder judiciário, limitar os mandatos nas cortes judiciais, democratizar o mecanismo de escolha de seus membros, criar e fortalecer instrumentos de controle da sociedade sobre o poder judiciário, são algumas bandeiras que fazem parte da agenda política do país nesse momento.
São estes alguns desafios que o novo governo, liderado por uma mulher pela primeira vez na nossa história republicana, terá que enfrentar. Os interesses contrários serão fortíssimos. As forças reacionárias e de extrema direita, que hibernavam desde o fim da ditadura militar, reapareceram com vigor na disputa eleitoral deste ano. Mostraram que não há limites nem éticos e nem legais para se fazer ouvir.  As baixarias da campanha, onde o tucano  José Serra foi  um desmiolado porta-voz, mostrou a força desse segmento social e do que são capazes.
Enfrentar esses desafios exigirá da presidenta clareza política e muita força de vontade. O respaldo vindo das urnas, infelizmente, será insuficiente para se contrapor aos interesses do capital, à elite entreguista  e às forças direitistas. A base parlamentar, na sua maioria, é mais suscetível aos interesses particulares do que ao programa vitorioso nas eleições. Alguns membros do próprio partido político da candidata eleita, e próximos a ela,  dão a impressão que estariam mais a vontade nas fileiras tucanas do que defendendo suas propostas governamentais, em defesa dos mais pobres.
Assim, como foi determinante no segundo turno das eleições, os movimentos sociais, sindicais e estudantis, as pastorais sociais, os comunicadores progressistas que ocuparam um importante espaço na internet, precisam ir às ruas durante esses próximos quatro anos. Somente a mobilização popular, preservando sua autonomia frente ao governo, será capaz de assegurar novas conquistas e frear as forças direitistas que afloraram nessa campanha eleitoral.
2/11/2010
Dilma na presidência: um novo governo?
Entrevista especial com Luiz Werneck Viana, pagina da Unisinos.

Um dia após a eleição da nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, a IHU On-Line entrevistou, por telefone, o professor Luiz Werneck Viana. Diante do cenário atual do governo Lula e do perfil da presidente eleita, o sociólogo afirmou que “Dilma enfrentará questões circunstanciais de peso”, como a questão cambial e reformas da previdência, tributária e trabalhista. “O que nós temos é uma página em branco. É como se o Brasil tivesse começando agora sua história com uma democracia consolidada, aprofundada com a presença das grandes multidões na cena através do voto”, declarou o professor.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj e ex-presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que esperar desse cenário político sem a presença de Lula?
Werneck Viana – Alguma coisa vai mudar, porque a capacidade de negociação do presidente Lula é quase notória. Ele foi capaz de uma frente pluriclassista e pluripartidária de uma forma muito eficiente. Ela tem o mesmo compromisso, mas se o voto é transferível, o modo de operar não é. Isso vai dar alguma diferença. Além do mais, as propostas mudaram. Certas forças que haviam para essa coalizão pluripartidária e pluriclassista se mantivesse, não são tão favoráveis a questões tão emergentes como a Reforma da Previdência. Essa é uma questão que está se impondo no mundo todo e vai chegar aqui. Não sei quando vai chegar, mas vai acontecer no governo dela. Isso deve trazer abalos.

O tema cambial também é urgente. Como será que ela vai atender a isso? O agronegócio tem seus interesses muito fortes nessa questão por causa das exportações, assim como o setor industrial. Creio que a política de beneficiar o quanto possível igualmente a todos, como ocorreu nos mandatos do presidente Lula, vai ter dificuldades de se reproduzir.

Então, para além dos estilos pessoais, Dilma enfrentará questões circunstanciais de peso. Penso que o status dela de manobra tende a diminuir. Se você colocar ainda os temas das reformas tributárias, trabalhista e sindical, questões que tendem a organizações oposições entre empresários e trabalhadores, poderá prever os obstáculos que esse governo pode enfrentar. Além disso, há a questão ambiental, principalmente em função do Código Florestal que está em tramitação no Congresso. Também não vai dar conta de todos, alguém vai sair perdendo. Por isso, a agenda de Dilma será, desde o início, muito complexa e complicada. Toda agenda presidencial é, mas isso faz com que nós pensemos que certas linhas de continuidade entre o governo Lula e o governo Dilma, se não rompidas, serão esmaecidas.

IHU On-Line – Em que setores Dilma e Lula se assemelham e se diferenciam?
Werneck Viana – Por mais que a Dilma se empenhe na questão social, falta a ela a marca a compaixão que o presidente Lula teve nos dois mandatos, assim como a identificação da origem. Ele veio de baixo, ele tem uma fala e uma linguagem muito próxima dos setores subalternos da sociedade. Ela não. Ela é administradora, fala a partir de determinados imperativos lógicos do mundo sistêmico. Isso empedra um pouco o discurso dela. Isso dá diferença.

Um tema que veio amadurecendo ao longo do segundo mandato de Lula, a ideia desenvolvimentista de tipo Geisel. Creio que ela vai tentar dar continuidade a isso. Quando fala em empresas campeãs, isso quer dizer políticas estatais favoráveis a determinados setores empresariais com a orientação de escalar a presença no cenário econômico e político internacional. Agora, não sei se essa política de aproximação com Chávez, por exemplo, se dará do mesmo modo. Acho que haverá uma certa inflexão aí. Inclusive, a posição de Dilma em relação às Farc é de muita desconfiança. Alguma coisa por aí vai mudar...

IHU On-Line – Os votos de Marina foram influenciados pelos debates em torno do aborto e da união civil gay?
Werneck Viana – Em parte. Seria injusto com a campanha da Marina atribuir a ela essa conotação atrasada, quase obscurantista de sistemas comportamentais. A questão ambiental perdeu-se e teve peso, a meu ver, sobretudo, uma concepção de política da Marina mais avançada do que aquela que Dilma e Serra apresentaram nas campanhas. Isso não teve peso de massa, mas atuou bastante nos setores intelectualizados, mais cultivados. Isso também, pesou. Então, eu não explicaria a votação da Marina como uma razão comportamental orientada por valores religiosos.

IHU On-Line – Como o senhor classifica o silêncio intelectual no cenário dessas eleições?
Werneck Viana – Os intelectuais até fizeram barulho no Teatro Oi/Casa Grande. Até porque uma coisa é o Teatro Casa Grande da década de 1970, outra é o Teatro Oi/Casa  Grande. Não é a mesma coisa. Estavam lá o Gil, o Niemeyer... Mas a meu ver essa campanha foi muito rebaixada, onde não se discutiu projeto de país, onde os candidatos se comportaram como ventríloquos de marqueteiros, onde não se discutiu política. Como se fossem representantes de dois supermercados gigantes, cada um oferecendo ao grande público bens e serviços mais acessíveis e baratos. Isso resultou numa coisa importante de que a questão social ganhou uma legitimidade de tal natureza que será impossível para o governante não investir pesadamente nela, especialmente educação e saúde.

Eu diria até que mais em educação do que em saúde porque acho que esse foi o resultado mais positivo dessas eleições, embora nenhum dos candidatos tenha apresentado um projeto de Reforma do Sistema da Saúde e do Sistema Educacional que fossem incríveis. Para governar este país, os interesses das grandes multidões têm que ser atendidos. Porque, inclusive, a democracia política reforçou-se poderosamente no país nessas eleições. A própria Dilma falou na importância da defesa da Constituição em seu primeiro discurso.

IHU On-Line – Que balanço o senhor faz das forças políticas que estiveram junto com Dilma?
Werneck Viana – Tem de tudo aí. Tem até o PSB que é um partido emergente, do ponto de vista dos governadores, elegeu cinco governadores. Houve também a representação do que há de mais tradicional nas oligarquias brasileiras, tipo Collor e Sarney. Isso é um propósito muito heterogêneo, manter tudo isso unido em torno de questões como falei há pouco, reformas tributária e previdenciária, por exemplo. Não vai ser nada fácil. É verdade que o PMDB vai ter um papel muito grande nisso e tudo indica que esse vai ser um governo PT-PMDB como nenhum outro. O PMDB vai ter um papel muito particular na preservação nessa coalizão. Acho que isso agora, em boa parte, vai passar à administração do PMDB.

IHU On-Line – O primeiro mandato de Lula, afirmou o senhor em um artigo, teve um "protagonismo dos fatos" e empurrou o governo pela ortodoxia econômica. No segundo mandato, assistiu-se a emergência do papel do Estado e a sua capacidade de “engolir a todos” e submeter a si mesmo a administração de todos os conflitos. Agora, num terceiro momento, o que podemos vislumbrar?
Werneck Viana – Creio que a tentativa de intervenção maior sobre os atos é próprio da candidata Dilma. Ela tem esse perfil. A história é de um voluntarismo político feita com pequenos grupos que pretendiam mudar o país a partir das suas ações. Por isso, vamos ter um governo onde a marca do voluntarismo vai se fazer presente. Em que medida, eu não sei, o impulso será sempre para intervir de forma forte sobre as circunstâncias.

IHU On-Line – Por que o senhor diz que nestes 16 anos de PSDB e de PT, de governos de social-democracia brasileira, atingimos a um ponto final da história do Brasil? Que história começaremos agora?
Werneck Viana – Acho que isso está desmentido. O que nós temos é uma página em branco. É como se o Brasil tivesse começando agora sua história com uma democracia consolidada, aprofundada com a presença das grandes multidões na cena através do voto. Esse é um voto que é mobilizado a cada dois anos. É uma situação muito interessante. O Brasil é um grande laboratório. Porém, por outro lado, deve ser acentuado também o seguinte: a nossa política está cada vez mais americanizada. Sem a procura de projetos alternativos de sociedade, voltada para interesses de grupos e de regiões, com o marketing político tendo um papel muito poderoso. A disputa entre classes, por exemplo, entre projetos classistas, que é uma marca tradicional da política brasileira, está quase desaparecendo.

Qual é o partido dos empresários no Brasil? É tanto o PSDB quanto o PT. Em alguns lugares, inclusive, mais o PT. E tem também aí um campo enorme para pesquisa eleitoral. O mais interessante é ter como objeto o voto na Marina. Quem votou na Marina? E também a presença desses nomes ocultos dos evangélicos na política brasileira. Isso ficou muito claro. A Igreja Católica não tem mais o papel que tinha na orientação da população. Os evangélicos demonstraram uma força muito grande. Inclusive, boa parte deles apoiou Dilma. A relação entre política e religião sempre existiu, mas muito monopolizada pela hierarquia católica. Agora isso se ampliou e há novos personagens no cenário, como os pastores. Estes são um tipo de intelectual muito particular. Ele é extraído de baixo, sacerdotes católicos até podem ter saído de baixo, mas têm tratamento de elite, vão estudar no Vaticano, se formam em teologia e filosofia.

No caso dos evangélicos é diferente; eles são extraídos de baixo, se formam neste mesmo espaço em cursos de bíblia e vão às ruas, ficam muito perto do seu “rebanho” e, por isso, têm uma força muito grande. Eles realmente participam da vida política. Resultado: a bancada evangélica no Congresso brasileiro é significativa hoje. Enfim, tudo isso faz com que, para se dar um passo aqui, você tenha que calcular muito. Isso, a meu ver, vai moderar bastante o elemento vontade que eu imagino estar na motivação presidencial da Dilma porque, nesse mundo tão marcado, não é fácil avançar. Só se faz isso depois de regimentar forças. Foi com essa mudança que, querendo ou não, o Estado tende a perder precedência sobre a sociedade civil. Isso vai dar a sociedade civil mais possibilidade de ação. O fato de o movimento feminista ter se deixado encapsular por secretárias de Estado fez com que ele perdesse inteiramente sua capacidade de intervenção e influência e, assim, quando a questão do aborto apareceu, não havia quem defendesse uma posição mais civilizada em relação ao tema.
 Que a vitória não nos faça esquecer que o inimigo é forte


Bem que o Brasil do atraso tentou, o Brasil da calúnia, da infâmia, da subserviência, o Brasil que perdeu a noção da História e da realidade em que vive e da realidade que o cerca.

Por Izaías Almada, no blog Escrevinhador

Não adiantou o cidadão e candidato José Serra e a oposição que representa construírem uma estratégia eleitoral torpe, baseada no ódio, na intolerância e no preconceito, pois o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostrou que parte de sua acertada estratégia política está cumprida ao eleger sua candidata e sucessora.

Vitória da perspicácia, da sensibilidade no trato das coisas políticas, da coragem pessoal em confrontar, à sua maneira, a oligarquia que deixou o governo em 2002. E o fez com paciência e tentativas de diálogo e – sobretudo – com o conhecimento do seu povo.

É preciso reconhecer: haja sociologia para explicar 83% de aprovação popular a um governo no Brasil. Já disse alguém que a política é a arte do possível. Para muitos, infelizmente, ainda é difícil entender isso. À direita e à esquerda.

Neste, 31 de outubro de 2010, venceu o Brasil que quer continuar mudando, que busca alternativas para se tornar um país mais soberano e menos injusto. Venceu o povo brasileiro mais sofrido e humilde. Venceu novamente a esperança. Ou, para os menos otimistas, a possibilidade de se continuar tendo esperança. E ouso dizer também que, mais do que o Brasil, venceu a nova América Latina de Chávez, Morales, Correa, Lugo, Cristina e Nestor, Castro, Funes, Mujica e Ortega.

Os miasmas da intolerância e de um fascismo travestido de faniquitos democráticos não muito bem explicados em manifestos e editoriais jornalísticos, em telejornais e revistas de final de semana, em violência e profanação religiosa, em tentativa de manipulação da opinião do eleitor, nos últimos três meses, ou se quisermos, nos últimos oito anos, não foram suficientes para desviar milhões de eleitores brasileiros da rota de um desejo sincero de ver o Brasil mais justo, mais independente e de olhos postos no futuro e não no passado.

Retomando a História interrompida com a morte de Getúlio Vargas e traumatizada pelo golpe civil/militar de 1964, que derrubou um governo eleito democraticamente, a vitória de Dilma Roussef faz uma ponte com nosso passado ainda recente e relança as bases de um protagonismo popular para o futuro, fazendo o país voltar ao leito democrático de onde foi retirado pela força de tanques e baionetas apoiados pelo Departamento de Estado norte americano, esse mesmo Estado que continua a insistir com sua política de desestabilizar governos eleitos democraticamente, como a Venezuela de Chávez, a Bolívia de Evo Morales, a Honduras de Manuel Zelaya ou o Equador de Rafael Correa. E que, com certeza, não dará tréguas ao governo de Dilma Roussef. É bom que não nos esqueçamos disto no calor e na alegria da vitória.

No vácuo da repressão policial/militar da ditadura, com a sua falta de garantias democráticas plenas, instalou-se também no Brasil, em anos mais recentes, a ditadura do poder econômico, impondo-se entre nós o pensamento e a prática hegemônica neoliberal, assumida por uma social democracia encantada com a possibilidade de chegar ao poder político, como de fato chegou, com a chamada redemocratização do país na metade dos anos oitenta.

E com o sonho de lá permanecer por pelo menos 20 anos, no dizer de alguns de seus caciques, começando com a imoral compra de votos para a reeleição do seu até então maior ideólogo, Fernando Henrique Cardoso, o presidente das privatarias e traidor do povo brasileiro. Essa prática política encantou àqueles que olharam o país e a História com o binóculo posto ao contrário.

Nesses últimos 50 anos de História, tanto uma, a ditadura, quanto o outro, o poder econômico imposto pelo Consenso de Washington, tiveram a seu lado aquele que pode ser considerado o mais forte aliado do mundo contemporâneo: a força do quarto poder, a mídia. Jornais, rádios, televisões, revistas, em grande parte subsidiados ideologicamente por pensadores e acadêmicos de dentro e de fora do país, fizeram de seus editoriais e matérias jornalísticas a apologia diária do paraíso para o capital transnacional, com seus deslumbrados e submissos defensores internos, ao mesmo tempo em que combatiam e dilapidavam as garantias e a defesa dos direitos dos trabalhadores através do arrocho salarial, da terceirização de serviços, do aumento do desemprego, do desestímulo às reivindicações de inúmeras categorias profissionais, da privatização de empresas nacionais estratégicas, agindo contra os interesses nacionais, da criminalização dos movimentos sociais, mantendo intacto – de certa maneira – o arcabouço repressivo ditatorial com um inquestionável conservadorismo na sua prática política.

Tudo isso sustentado por uma democracia e uma Constituição, aquela que melhor se pôde arranjar em 1988, a tal Constituição Cidadã, um imenso tratado com quase quinhentos artigos, tamanho o número de interesses a serem contemplados e acomodados, e que ainda assim, na prática, vem sendo solapada e substituída no dia a dia por um mecanismo anacrônico denominado Medida Provisória, que sempre poderá agradar ou desagradar a gregos e troianos, conforme os interesses de momento e o grupo que estiver no poder político.

Em verdade, passamos a viver a partir da segunda metade dos anos 80 um arremedo de democracia. Dá para o gasto, é claro, pois sempre podemos encher a boca e dizer que vivemos num país democrático, e sob vários aspectos isso é verdade, muito embora os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com as honrosas exceções de sempre, se deixaram ou ainda se deixam escorregar tentadoramente por caminhos tortuosos, para dizer o menos, quando fica bastante evidente a verdadeira luta de classes no país.

A recente campanha eleitoral deixou à mostra como muitos brasileiros entendem a democracia: um regime de privilégios que é preciso manter a ferro e fogo, sempre e quando para isso se use tais “privilégios” para arrasar o adversário, assassinar sua reputação, atribuindo-lhe as piores qualidades morais e profissionais. São os democratas de fins de semana, dos almoços dominicais com a família. Hipocrisia que a campanha do candidato José Serra mostrou à perfeição.

Nesse quadro político e institucional, os homens que queriam governar “por 20 anos” descuidaram-se e o sentimento de mudanças que permeava partidos de esquerda e movimentos sociais desde o período ditatorial, soube se movimentar, mesmo com suas divergências, contradições e até defecções, criando condições para que o país buscasse alternativas para o sufoco neoliberal.

Incrédulos com a vitória do metalúrgico semi-analfabeto em 2002, os serviçais e bajuladores da “Casa Grande”, fiéis leitores da cartilha econômica do neoliberalismo, apostaram suas fichas no fracasso e na incompetência do operário, sem jamais esconder o seu preconceito de classe e seu espírito impatriótico. À medida que o tempo avançou e o fracasso esperado do governo Lula não vinha, os órgãos de comunicação social foram mais uma vez acionados com bastante virulência no ano de 2005, pois nova derrota eleitoral seria o início do desastre.

De nada adiantou a campanha moralista naquela altura, curiosamente liderada por alguns dos políticos mais imorais e corruptos do país, alguns deles felizmente defenestrados nas recentes eleições, ou as CPIs policialescas instaladas nas duas casas do Congresso Nacional, onde a pregação intolerante contra o Partido dos Trabalhadores e a esquerda de um modo geral chegou a ser defendida com o chamamento à eliminação “dessa gente” da política brasileira.

Bravatas, arrogância e intolerância substituíam os discursos políticos daquilo que se poderia esperar de uma oposição minimamente civilizada, se é que se pode chamar de civilizados um grande número de dilapidadores do patrimônio nacional em beneficio próprio.

Acuado, o governo soube esperar a hora do contra ataque. E o fez no seu segundo mandato, aprofundando as suas políticas sociais e de infraestrutura econômica. Lula se reelegeu em 2006 e chega a 2010, no final do seu governo, com um índice de popularidade “nunca visto antes na história desse país”. E mais: sai o operário e entra uma mulher. Impensável no Brasil de dez anos atrás.

O desafio que tem pela frente a presidente Dilma Roussef é enorme, a começar pela guerra diária que lhe imporá a vetusta oligarquia brasileira e sua velha mídia incompetente, desonesta e oportunista.

Mas, guerra é guerra e o povo, atento e organizado, sempre que chamado, irá se manifestar através de sindicatos, dos movimentos sociais, das entidades estudantis e dos partidos políticos comprometidos com a soberania do país e das suas conquistas sociais, fazendo avançar essas conquistas. E também através de uma nova mídia que se forma pela internet ou – o que espera o país – ver alguns jornais, revistas e televisões tendo que se ajustar a um novo marco regulatório para a comunicação social, tornando-a verdadeiramente democrática.

De hoje em diante toda atenção é pouca, porque o conservadorismo, agora efetivamente de mãos dadas com o emergente fascismo tupiniquim não irá descansar. E essa é uma união mais do que perigosa. Alguém já disse que para onde pender o Brasil, deverá pender a América Latina. Não deixemos que a vitória nos faça esquecer que o inimigo é forte e continuará sua insidiosa luta no dia a dia das calúnias, das mentiras, dos factóides, tentando minar a confiança do povo no seu novo governo.

Felicidades, presidente Dilma Roussef! Seja bem-vinda.

* Izaías Almada é escritor e dramaturgo. Escreveu, entre outros, o livro Teatro de Arena – Uma Estética de Resistência (Boitempo) e Venezuela – Povo e Forças Armadas (Caros Amigos)
 

 
 
 

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