quinta-feira, 11 de novembro de 2010

As Cantadoras do Norte e o Pica-pau Amarelo


gisela d´arruda
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As cantadoras do norte e o pica-pau amarelo.


O Coral de Música Antiga da UFF1 em seu disco Medievo-Nordeste preferiu modificar a versão coligida do sangrento Romance de Paulina 2e Dom João cantando “que nessa terra morreu” em vez de “por ser um cruel judeu”. “Judeu” sendo ali claramente uma ofensa, não uma definição étnico-religiosa. Este Romance figura também na coletânea da inestimável Dona Militana, norte-riograndense como a cantadora cuja versão o coral escolheu; na segunda versão, e versões são a alma da tradição oral, não aparece o trechinho que causou espécie na UFF. Mas aparece tanta coisa mais, nas muitas cantigas reunidas na voz dessa matriarca, que não fica devendo nada nesse quesito - nem certamente noutros mais aprazíveis. Tenhamos em mente que cantos como os de Dona Maria Aleixo ou Dona Militana são quase sempre muito antigos, como sugere o título do disco dos universitários; têm a ponta de um pé no tempo do cativeiro, o outro imerso no tempo da Colônia. É parte de seu fascínio:
Os livros que vieram para cá,
o Lunário e a Missa Abreviada,
a donzela Teodora e a fábula,
obrigaram o sertão a estudar 3.
O Romance de Paulina, uma pequena hecatombe em família, veio segundo os organizadores justamente de além-mar. De terras onde governava, a poder de autos-da-fé, e acima quase do rei, a Santa Inquisição; onde judeus, que por seu lado mantinham-se à parte e casavam-se entre si, eram tidos como estranhos quando não perigosos. E até em terras livres da Inquisição, autores medievais como Chaucer demonstraram com naturalidade o preconceito. Dificilmente dele haveria de escapar o nosso cancioneiro mais antigo.
Nos cantos ancestrais que a memória de Dona Militana preservou, a morte dos outros é banalizada com horripilante naturalidade, pais mandam queimar filhas, professores matam meninos e são mortos pelos pais (esse caso parece narrar uma tragédia mais recente, já do tempo da República talvez) e o desagradável Romance da Nega Preta, que estourou por, sendo preta, ter parte com o diabo (sem dúvida, aí falou o temor do autor às mandingas) deve ser visto nesse contexto. Cantos populares não são manuais de boas maneiras nem de amor universal, e isso vale inclusive nas produções urbanas relativamente contemporâneas como O Teu Cabelo Não Nega. Só muito recentemente, com muito feriado de Zumbi dos Palmares de permeio, é que se pode ouvir um grupo de jongo4 entoar Chega de lambança, cabelo de negro só dá trança; você quer fazer o que o branco faz, pegar o cabelo e jogar pra trás.
Preconceito ainda existe sem a menor dúvida entre nós e particularmente no Nordeste; dizem que só há pouco tempo os traficantes da favela carioca da Rocinha, todos oriundos do norte, permitiram a residência de negros nesse morro. Nem é apenas contra os negros o preconceito do cancioneiro popular; Dona Militana narra as façanhas de um valentão do sertão, algo como um Madame Satã local. O ouvinte só vem a saber desta faceta no final, quando policiais demais imobilizam o herói que pede ajuda ao amigo, passando na rua com uma criança no colo, assim:
Marica pente de ouro, cabelos à triolé, Marica pente de ouro, cabelos à triolé, pela criança nos braços, socorrei a Manuel. Marica pente de ouro, cabelo de São João, pela criança nos braços, tirai-me dessa prisão. Responde o outro rapaz, Manuel, se eu fora homem, tu na cadeia não ia, Manuel, se lágrima valesse, tu na cadeia não ia.
O delegado às risadas manda soltar o valentão, mais desmoralizado pela revelação do que pela punição de qualquer cadeia. O curioso é que o narrador, alertando contra essas amizades que depressa dão desgosto, se diz “ensinado” de igual forma por um ingrato amigo do tempo de garoto...
(Na verdade, até mesmo nesses três volumes reunidos em álbum em 2002, em que se ouve a rabeca do pesquisador Antônio Nóbrega, existe certo preconceito involuntário contra a própria sertaneja homenageada. Pois não nos parece normal que a letra impressa das cantigas seja inteiramente “transcrita”, como nessa quadra do Romance de Dom Antônio:
Acorda dom Antonho, num é só durmi, vai chamá tua mãe, que eu quero pari. Chega a dificultar a leitura essa premissa que sertanejo fala outra língua, mais exatamente que só ele foge à pronúncia exata das palavras do dicionário; senão, vejamos: Seu Majó Antonho Luca apôs o mande chamá pa com ´gulino Sabugi e do givi vadiá. “Apôs” em vez do clássico “apois” e “e do givi vadiá” no lugar do perfeitamente inteligível5 “ele hoje vir vadiar”. )
Alegria! Dona Militana também narra as proezas do escravo que dorme com a mulher do amo e foge com ela, impunemente:
Vinde cá nego dendê, meu tostadinho de sol,
eu por preto não te enjeito e quanto mais preto mió. 6
Coletâneas como essa reúnem as cantigas de que se conseguiu lembrar, às vezes com dificuldade. Não são diretivas educacionais e sim nosso retrato num velho espelho; é uma fatia do pensamento de gerações, e neste, como na saga do casal transgressor, sempre há de haver lugar para vozes independentes.
As cantadoras e cantadores nordestinos se dirigem primeiro ao público local, em seguida aos ouvintes distantes que vêm a saber dos seus eventuais discos e conseguem adquiri-los, formando certamente, uns e outros, amostragem não muito representativa da população nacional. Mais candente, por envolver as crianças em idade escolar de todo o País, é o caso que se colocou em 2010 a respeito dos livros de Monteiro Lobato.
Não nos surpreendeu a iniciativa oficial de não querer mais expor as crianças na escola a determinadas frases infelizes que se encontram nesses livros; afinal, não apenas lembrávamos delas como já as havíamos mencionado em texto nosso. Surpreenderam-nos duas coisas, a intensidade dos artigos publicados declarando não haver racismo algum na série de Monteiro Lobato, e a quantidade de conhecidos que concordaram com a nossa sugestão, postada na rede, de se incluir nos livros um prefácio contextualizador, providência essa que já há muito se poderia ter tomado. Crianças não costumam ler prefácios, claro. Por isso, a sugestão era de prefácios de aspecto lúdico voltados para esse público, feitos por autores consagrados de obras infantis. Quem sabe com alguma ilustração.
Afinal é Monteiro o autor do inacreditável Presidente Negro, em que sugere o branqueamento cosmético da população negra através de pílulas, aliado à miscigenação com “brancos” (atraídos decerto pelo embranquecimento superficial) para que com o tempo os genes melhorassem mundo afora, e tudo sem efusão de sangue. Não deixa de ser um tanto injusto para com o autor paulista que hoje se tenha ele tornado, ou se esteja tornando, símbolo de preconceito racial, já que a maioria de seus contemporâneos da mesma e até de outras classes sociais teria sugerido, não essa miscigenação clareadora, mas que os negros permanecessem onde estava a Tia Nastácia, fritando bolinho e servindo café. Ocorre que nenhum deles escreveu uma série tão marcante para crianças, e que não se cogitam seus livros para a sala de aula; não são os seus preconceitos que causam desconforto a alunos e professores, são os do autor de Caçadas de Pedrinho. O drama de Monteiro Lobato é a qualidade de seus livros infantis, e não sabemos aliás até que ponto as crianças de hoje, com prefácio ou sem prefácio, se reconheceriam naquelas aventuras que trouxeram magia a tantas infâncias de antes das telinhas. Aventuras que a telinha da grande rede de televisão deturpou e empobreceu.
Censurar os textos não é apenas repreensível, é impossível pois as situações estão urdidas na trama. A censura operada pelo coral da UFF tem sentido: não era, como no mencionado trabalho das cantadoras, retrato da mentalidade de um povo: o disco traz cantigas galegas e francesas também além de peças instrumentais; alguns dos integrantes são judeus e têm todo direito de se recusar a vocalizar o versinho original; este é mera versão, como se viu, e consta em nota de pé de página, no encarte. É por fim um versinho solto, perdido num “romance” de trinta ou quarenta quadras; não parte integrante da obra inteira como a figura e personalidade de Tia Nastácia. É notável aliás que essa personagem seja a TIA Nastácia, um ser privado de descendentes. Monteiro Lobato não quis a complicação de netinhos não embranquecidos pela pílula milagrosa brincando por ali, e os evitou de modo discreto e eugênico. E apesar de tudo a Tia vive aventuras inesperadas e importantes por conta própria, não permanecendo apenas escorada no fogão.
Recentemente, um pesquisador francês lançou um documentário sobre a gestação de Mein Kampf, e um ensaio já disponível no Brasil. Na França é permitida a impressão do texto nazista e quase ninguém compra, na Alemanha é proibida e ninguém parece lamentar, noutros lugares preocupa a avidez com que é buscado. O autor da pesquisa declara não ter certeza, após entrevistar dez historiadores, se deveria ou não ser proibido, mas tem, no entanto, que não adianta mais, tantas são as versões piratas em determinados países. Insiste que o melhor antídoto é o bom exemplo, o bom senso e a democracia. Sem querer nem de longe comparar a obra de Monteiro Lobato, Presidente Negro incluído, à bíblia do nazismo, disso nos pode ficar alguma lição. Apliquemos, cada um de nós, o bom senso e o bom exemplo, tanto no caso da contextualização do Sítio do Pica-Pau Amarelo como no resto. E isso vale para cada um de nós, qualquer que seja o tom de nossa pele.

Resumo: Preconceito de todo tipo existe na literatura oral, e nem por isso devemos rejeitá-la. Preconceito existe igualmente na obra de Monteiro Lobato, causando polêmica entre educadores e pensadores. O texto sugere possível caminho.

Biografia: Gisela d´Arruda é escritora e terapeuta, tendo publicado entre outros na Pallas Umbanda Gira! (2010); a sua peça Baseado está prevista para o final do mesmo ano. Na Revista do IGHB publicou o artigo Sabão em Mão de Lavadeira (2008). Mantém o portal e blog www.caminhodasfolhas.com.

1Universidade Federal Fluminense, de Niterói, RJ.
2 A versão da UFF é de dona Maria Aleixo, coligida no Cancioneiro de Alcaçus. Ambas versões são do RN.
3 Antônio Vieira.
4 O de Pinheiral, SP, especialmente antenado na atualidade.
5 Mané Caetano.
6Nego Piauizeiro.

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