quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Ruy Carlos Ostermann

Beckett por acaso

Ruy Carlos Ostermann

Literal e quase definitivamente com os dois pés dentro d’água. Os pés, os sapatos, as meias, metade da calça. Sensação de morno com azedume subindo pelas pernas, uma imobilidade constrangedora, falta de perspectiva, nenhum horizonte visível. Céu fechado, respingos de chuva, cabelo escorrido pela garganta camisa abaixo.

Quatro horas ou mais, silêncio, os pés já imóveis, atolados, os dedos com ardência e comichão, a sola do pé desconhecida.

Penso como cheguei até aqui e por onde começam as entradas, se é que elas existem além do que se vê. Tento virar o corpo, girando os calcanhares: só vejo por cima do ombro. Os óculos estão embaçados e sujos de barro. Vou usar as mãos, uma depois da outra, para ao menos proteger o peito. A melhor ideia foi a de enfiar as mãos nos bolsos e deixá-las lá dentro esquentando. Doem os pés. Afundo mais um pouco, já estamos pelos joelhos e há um estremecimento abaixo de onde estou empacado.

O esforço para retirar um dos pés levantando a perna é inútil, afundo mais um pouco com bolhas ao redor. Não há árvores ou arbustos, só o perfil imóvel da água. Está suja, barrenta, com dejetos imobilizados na superfície. Pela primeira vez começo a ficar impaciente e logo um pouco desalentado, perdido naquele lodaçal, sem qualquer futuro visível.

Mas é então que me dou conta que estou reescrevendo o Beckett, sem graça.

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