sábado, 13 de fevereiro de 2010

Haiti

Um mês após tremor no Haiti, só um terço dos desabrigados foi atendido e haitianos seguem em risco


Um mês após o terremoto que arrasou o Haiti, a ONU vive uma crise interna, promove mudanças em sua estratégia, é obrigada a lidar com a vaidade de seus embaixadores da boa vontade e não consegue atender todos os necessitados. Apenas um em cada três haitianos desabrigados tem hoje uma barraca para passar a noite.

A reportagem é de Jamil Chade e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 12-02-2010.

Se os dados estiverem corretos, o número de mortos no Haiti supera o de vítimas do tsunami que atingiu a Ásia em 2004. O governo, que hoje declara dia de luto nacional, chegou a falar em 230 mil mortos. Mas há discrepâncias. Alguns ministérios falam em 217 mil mortes. Nenhuma entidade internacional confirma esses números, enquanto há dúvidas sobre a metodologia usada pelo governo para calcular as vítimas.

Segundo a ONU, 250 mil casas e 30 mil escritórios comerciais foram destruídos. Os escombros dariam para construir 200 estádios de futebol. Hoje, 1,2 milhão de pessoas estão desabrigadas. Apenas um terço foi atendido. Quase 500 mil deixaram a capital, Porto Príncipe, rumo ao interior. A ONU ainda sofreu a maior perda de funcionários de sua história em um único acidente.

A questão de abrigos é a mais crítica. Nos primeiros dias da crise, a Organização Internacional de Migrações (OIM) ficou encarregada de adotar uma estratégia para abrigar os que perderam suas casas. A opção inicial foi apelar por barracas e governos de todo o mundo enviaram os produtos ao Haiti. Um mês depois, constataram que a temporada de furacões começará e a estratégia foi um erro.

Outro fracasso foi a tentativa inicial de criar amplos campos para desabrigados. Não havia espaço para receber 50 mil pessoas e havia o risco de que um acampamento desse tamanho se transformasse em uma favela. O Estado obteve confirmações de que a OIM foi afastada nesta semana do trabalho. A tarefa de encontrar abrigos ficou com a Cruz Vermelha.

A corrida agora é para construir casas provisórias ou galpões antes da chegada das tempestades. Em 2008, quatro furacões atingiram o Haiti, deixando 800 mortos. Se os desabrigados não receberem moradias logo, serão novas vítimas das tempestades.

Enquanto o país vive uma situação crítica, a ONU enfrenta uma saia-justa diante da demanda de seus embaixadores da boa vontade, que insistem em visitar o Haiti. A última foi Angelina Jolie. A decisão de realizar a visita causou um mal-estar na ONU. Funcionários disseram que tiveram de parar seus trabalhos para acompanhar a estrela de Hollywood.








O Haiti, antes e depois da eminência de uma tragédia anunciada

Jose Luis Patrola

Quem foram eles na busca da independência ?

A conquista da independência haitiana efetivada mediante uma verdadeira guerra de escravos contra o exército de Napoleão no ano de 1804 se tornou a primeira revolta de escravos que triunfara na história da humanidade reativando as lutas pela independência no continente. A revolução haitiana rompera com três grandes lógicas do período colonial; a escravidão, a dependência e a propriedade da terra. Os principais lutadores pela liberação colonial latino americana daquele período como Jose Martí e Simon Bolívar espelharam-se na revolução haitiana. Ao mesmo tempo, os ideais internacionalistas da solidariedade e do apoio mútuo estiveram presentes na estratégia política dos principais generais haitianos como Dessalines, Petion, Kristophe e outros que venceram as batalhas contra o exército do império francês.

Em março de 1806, durante o governo do pai da pátria haitiana, Jean Jacques Dessalines, Francisco de Miranda (um dos pais da pátria venezuelana) desembarcou no Haiti e jurou levar aquele exemplo vitorioso e inspirador para seu país e para todo o continente. Naquele momento, o país que acabara de sair de uma guerra que havia durado mais de 13 anos não tinha muito a contribuir além do exemplo e da inspiração aos demais lutadores. Miranda retornou à Venezuela inspirado.

Em 1815, depois de ter travado várias batalhas contra os espanhóis na costa caribenha Simon Bolívar desembarcou na ilha liberta. Seu exército havia sofrido várias baixas e se encontrava muito enfraquecido, além de lhe faltar recursos básicos para uma série de batalhas que alguns anos após triunfariam. Na época, o governo da recém fundada república haitiana, Alessandro Petion, realizara uma campanha nacional para arrecadar fundos para o Libertador latino americano. Uma imensidade de armas, alimentos, água, barcos e um batalhão de 300 combatentes conformou a solidariedade do povo haitiano para fortalecer a luta que encabeçava Bolívar pela independência na América Latina naquele momento. Em 1816 a mesma ajuda seria repetida.

A conquista da independência da Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia levada a cabo por Simon Bolívar foi capaz graças a solidariedade haitiana que exigia apenas a liberação colonial como reciprocidade. Não há dúvidas que, em grande parte, o triunfo de Miranda e Bolívar se efetivou com o apoio daquele pequeno país liberto que servira de base para o fortalecimento das lutas pela independência no continente.

Depois de 1825 o Haiti ingressa num processo de grave crise econômica sendo obrigado a pagar uma dívida milionária por sua independência. Naquela época, a França impôs um novo mecanismo de colonização; a partir desse período quase toda a economia do país se destinou ao pagamento da “dívida da independência”. Depois desse evento lamentável a economia haitiana jamais se recuperaria pois mergulhara em várias crises estruturais relacionadas á terra e ao meio ambiente, a autonomia econômica e a autonomia política.

Um século de ocupação militar norte americana;

No início do século XX os Estados Unidos começam a exercer influencia sobre a região e para assegurar o controle absoluto instala em 1915 a primeira ocupação militar norte americana. Os 19 anos de ocupação militar alem de estabelecer uma “nova ordem econômica” forçando um novo reordenamento territorial e demográfico a partir de interesses de empresas agrícolas, elimina fisicamente uma geração de lutadores sociais. Benwa Batravil e Chalmay Peralt, junto a mais de 19 mil haitianos, foram assassinados após travarem sangrentas batalhas contra os marines daquele momento.

No ano de 1957 após receber o apoio direto e irrestrito de organismos norte americanos o ditador Jan-Claude Duvalier assume o poder impondo a ferro e fogo um terrível silencio ao povo haitiano. Após a morte de Jean-Claude, seu filho François Duvalier foi nomeado presidente em reunião ocorrida na própria embaixada dos Estados Unidos em Porto Príncipe. Em 1986, após forte movimento interno a ditadura é derrubada deixando um saldo de mais de 30 mil mortos finalizando a segunda ocupação militar norte americana.

Em 1991 após sete meses de governo do presidente democraticamente eleito Jean Bertran Aristides, um golpe militar patrocinado pelos Estados Unidos em aliança com setores locais derruba o primeiro presidente eleito nas primeiras eleições livres na história do Haiti. Por três ano a violência se instalaria com a presença de 20 mil marines deixando um saldo aproximado de 4 mil mortos na efetivação da terceira ocupação militar norte americana

No ano de 2000 Aristides seria eleito presidente pela segunda vez. Nesse período o Haiti comemoraria 200 anos de sua independência. Aristides, eleito democraticamente começara a cobrar a “divida histórica” existente de países como Estados Unidos e Franca para com o pequeno país caribenho. Não contente com as exigências feitas naquela ocasião, setores norte americanos patrocinam uma campanha “cívico para militar” desestabilizando o governo de Aristides. Em 2004 tudo estava preparado para a efetivação da quarta ocupação militar norte americana apoiada pela Franca.

No dia 12 de janeiro do ano de 2010 um terrível terremoto afeta duramente o empobrecido e desestruturado país. De imediato, os Estados Unidos decidem, unicamente por sua “boa vontade” enviar 20 mil marines, portam aviões, helicópteros e outros instrumentos de guerra. Nessa ocasião se efetiva a quinta e maior ocupação militar norte americana. Esta por sua vez, estendida a todo o continente sul americano.

O terremoto e os efeitos colaterais;

Depois de todo o sensacionalismo midiático envolvendo a tragédia, começam aparecer os verdadeiros estragos ocasionados pelo abalo sísmico no interior da sociedade. Vejamos; A zona mais populosa do país com toda sua precária estrutura urbana destruída; Centenas de milhares de pessoas sem casas e sem perspectivas de trabalho; Uma nova ocupação militar massiva preparada para a guerra; Uma massiva migração urbano rural inchando ainda mais o empobrecido meio rural; Empresas especialistas em segurança e reconstrução criam sites oferecendo-se para “ajudar” o país pobre; A imposição do controle norte americano, consentido pelo governo local, distante de qualquer decisão da ONU e da OEA; Uma população pobre, desorganizada, mas resistente mostrando-se capaz de enterrar seus mortos e lutar contra a morte eminente.

Onde o problema é mais grave;

Os problemas sociais do Haiti sempre foram graves. As denuncias de ausência de infra-estrutura básica e inexistência de programas estruturantes de ajuda encheram páginas entrando e saindo nos olhos e nos ouvidos de muitos. Com o terremoto, os problemas se agravaram ainda mais e a impossibilidade de não ver e de não escutar fez com que a dita “comunidade internacional” olhasse de maneira mais séria àquele país duramente castigado pelas forças da natureza e pelas potencias internacionais.

É evidente que, o atual momento consiste em ajudar naquilo que consideramos emergencial. Significa auxilio em alimentação, água, saúde, acampamentos assegurando condições mínimas para os atingidos. No entanto, a médio prazo já sentimos a necessidade da ajuda estrutural no processo de reconstrução e na ativação de produção de alimentos. O Haiti necessita urgentemente de reforçar sua capacidade produtiva com um processo de incentivo a produção rápida de legumes, de grãos, de aves e porcos, construção de açudes para armazenamento de água, bem como um urgente plano de reflorestamento. A maior parte da economia haitiana sempre foi rural e agora a já pobre população receberá cerca de um milhão a mais de habitantes e terá incumbência de produzir alimentos prioritariamente para este novo público bem como para a população das zonas afetadas. Os movimentos sociais camponeses do Haiti em conjunto com governos progressistas do continente e do mundo deverão instalar uma revolução agrária para não permitir o aumento ainda maior da fome e a possibilidade de uma catástrofe demográfica eminente e sem precedentes históricos.

A solidariedade consiste em ajudar a resolver os problemas mais graves e estruturais da sociedade haitiana. Ajudar aos camponeses significa atacar o problema por sua raiz.

Na da história da humanidade os camponeses sempre conformaram a categoria social mais solidária nas relações sociais internas a eles. No caso haitiano se comprova mais uma vez essa realidade. Milhares de pessoas migram das zonas afetadas buscando melhores condições nas zonas não afetadas. Mais de 10 por cento da população migra de maneira desesperada buscando a solidariedade. Os pobres se tornarão ainda mais pobres. A fome se tornará ainda mais eminente. A falta de água será constatada de forma ainda mais sistemática. A população se auto ajudará ainda mais. E nós, o que faremos na eminência de uma tragédia anunciada?



Jose Luis Patrola, membro do MST e coordenador do programa de cooperação entre a Via Campesina e organizações camponesas do Haiti, residente no Haiti.














Não haverá muro que detenha os haitianos no País'. Entrevista com Jared Diamond


O geógrafo, ganhador do prêmio Pulitzer, analisou o fracasso das sociedades poderosas e o colapso ao qual o mundo se vê condenado. Já tinha alertado sobre o Haiti. Mas vê esperança.

A entrevista é de Rocío Ayuso e está publicada no El País, 07-02-2010. A tradução é do Cepat.

A chuva é torrencial. Los Angeles, em estado de emergência. As evacuações em zonas devastadas meses atrás pelos incêndios florestais, um fato. Jared Diamond, geógrafo norte-americano de 71 anos e professor de Geografia na Universidade da Califórnia, não se mostra preocupado, mesmo que a sua casa esteja em um desses lugares alagados. “Em uma semana choverá tanto quanto em todo o ano de 2009”, afirma.

Mas, não está imune ao caos. Porque este fisiólogo evolutivo, antropólogo e historiador é autor de Colapso (Record, 2007). E quando se é capaz de analisar clara e serenamente porque algumas sociedades perduram enquanto outras, como os maias ou os vikings, se extinguiram em seu auge, ou de ganhar o Pulitzer e escrever um best-seller Armas, germes e aço [Record] (estudo do modo como algumas culturas triunfam sobre outras), as condições meteorológicas californianas não vão romper a sua tranquilidade. Mesmo a situação atual do Haiti, país devastado por um terremoto de magnitude 7 e centro de muitos de seus estudos, não parece tirar-lhe o sono. Pelo contrário. Acusado às vezes de catastrófico e até de racista por recordar os perigos aos quais o mundo parece estar condenado, o terremoto que sacudiu a ilha que Colombo batizou, em 1492, de Espanhola parece dar-lhe esperança.

Em Colapso descreveu o Haiti como exemplo de sociedade atual à beira do abismo. Um país com desvantagens ambientais em relação à vizinha República Dominicana agravadas por decisões históricas, comerciais e políticas que durante séculos o mergulharam na miséria. E o terremoto os deixa sem o pouco que tinham.

Eis a entrevista.

Qual foi a sua reação diante do terremoto?

Foi gradual. Primeiro, assumir a notícia; os dados falavam de 100.000 mortos; depois, ver a incapacidade do Governo haitiano diante do problema ou a reabertura do aeroporto sob o controle do Exército norte-americano. E a pergunta, qual é o futuro do Haiti?, que me devolveu a discussões mantidas há cerca de cinco anos na minha visita à ilha. Uma incógnita com duas respostas: a dos incapazes de encontrar razão para a esperança e os que trabalhavam duro para encontrar alguma.

O normal, hoje, seria somar-se ao primeiro grupo.

É fácil pensar que o terremoto acabou com qualquer esperança, mas também deixa claro que esta catástrofe não é apenas um problema para os haitianos. O é também para os norte-americanos, canadenses, franceses. Soa cruel falar do Haiti como problema, mas são dez milhões de pessoas sofrendo. Crescem assim as razões para a preocupação. O Haiti está perto da nossa costa. Mais de 300.000 haitianos moram na Flórida. E com a piora da situação serão muito mais os desesperançados. Por isso, mesmo que seja só por seu próprio interesse, para evitar que tudo acabe aqui, devemos compartilhar sua preocupação.

E o resto do mundo, por que deve se preocupar com o Haiti?

Os canadenses estão como os norte-americanos. E na França, o argumento da obrigação moral com o Haiti está um pouco desgastado. Se queres que as pessoas ajudem, deves apelar para o seu próprio interesse. Como os Estados Unidos viram no 11-S e a Espanha após o ataque em Madri, quando as pessoas estão infelizes têm formas de compartilhar a infelicidade. O Haiti tem potencial para criar grande infelicidade nos Estados Unidos e na Europa. Como os barcos recordam aos espanhóis que há um problema na África ou os botes que chegam a Malta ou os albaneses à Itália, os haitianos não deixarão que esqueçamos os seus problemas em um ano, nem em cinco. Virão cada vez mais. Não haverá muro que os detenha no Haiti.

Agora sim soa catastrófico.

Não sou nem otimista nem pessimista. Desfruto do otimismo com cautela. E com o Haiti há razões para um otimismo cauteloso.

Por quê? O terremoto semeou a devastação em um país atormentado pela pobreza, falta de água potável, desmatamento e Aids...

Sim, as coisas pioraram. E já estavam muito mal antes. 99% do Haiti está desmatado, o que causa grandes problemas de erosão em um terreno muito montanhoso. Mas dito isto, a motivação nos Estados Unidos e na Europa para ajudar é mais forte do que nunca, e os benefícios de um Haiti economicamente viável serão melhores. É fácil discutir isso em termos econômicos. Por exemplo, perguntar-se quanto pode custar a reconstrução. Ou comecemos por problemas de saúde. Depois da Aids, o segundo maior problema é a malária. Quanto custaria acabar com essa doença? Muito pouco. Os mosquiteiros previnem contra a malária e cada um cobre uma mulher e duas crianças. São 16,8 milhões de euros. Há tantos norte-americanos que poderiam assinar esse cheque! Ou espanhóis. Ou em termos de trabalho, na última década são muitas as empresas que levaram o trabalho para fora dos Estados Unidos. Para o México. Mas agora os salários ali são mais altos que na China ou no Vietnã. Aqui entra o Haiti, mais pobre que o México e com uma grande força de trabalho não precisamente vaga, trabalhadores duros por salários modestos, o que é mais que não ganhar nada. Essas são razões para a esperança. São muitos os norte-americanos que poderiam abrir suas fábricas na ilha com investimentos mínimos. Paradoxalmente, há mais esperança do que nunca.

Quão distante está esta recuperação?

A recuperação é possível e necessária. O Haiti não tem recursos para fazê-lo sozinho e necessita da ajuda exterior, mas deve ser de modo que funcione com os haitianos. A ilha tem uma longa história com os Estados Unidos, e os haitianos têm boas razões para desconfiar do Exército norte-americano. Melhor seria contar com a ONU como guarda-chuva para criar uma força comum entre Espanha, que começou os problemas da ilha, e a França, que os aumentou, e os Estados Unidos e o Canadá. Seria a opção mais viável. Além disso, o atual Governo do Haiti não está nas ruas por falta de recursos, mas foi escolhido democraticamente. O próprio presidente foi atingido. Um Governo motivado, razoavelmente pouco corrupto, melhor ou não tão ruim como os Duvalier ou outros das últimas décadas. É o melhor momento para ser otimista.

De onde nasce seu interesse pelo Haiti?

Basta ler o título do meu último livro, Natural experiments of history. Dedico um capítulo ao Haiti. Este país é um experimento natural. Em história não podemos fazer como na química, colocar os elementos a serem analisados e submetê-los a provas. Se fosse um visitante de Andrômeda e quisesse analisar a raça humana, iria para a Espanha, traçaria uma linha e provaria coisas de ambos os lados. Felizmente, isto não é permitido, mas em Espanhola se dão essas condições de forma natural. Há uma linha, do lado ocidental está o Haiti, e do lado oriental a República Dominicana. Um experimento natural igual ao das duas Alemanhas ou Coreia do Norte e Sul. Daí meu interesse pelo Haiti. Me permite comparar o grau de evolução de sociedades que compartilham um território.

Não é contraditório que em Colapso fale da ameaça para o planeta das sociedades que chegam ao máximo de poder, mas quando sobrevém uma catástrofe seja o Primeiro Mundo que vem em socorro?

Parece ser assim, mas se ocorresse algo realmente terrível, se a economia mundial não apenas vivesse um grande susto, como em 2008, mas que em 15 anos entrasse em colapso ou houvesse uma guerra nuclear..., quem estaria em melhor situação, haitianos ou madrilenhos? Eu aposto nos haitianos. São muito pobres, mas não dependem de nada. Em Madri, se o Primeiro Mundo entrasse em colapso, as soluções não seriam fáceis.

Quais são as possibilidades de tal colapso?

Vamos falar em 30 ou 50 anos. Então saberemos se o mundo entra em colapso. Isso, se tivermos solucionado os problemas; caso contrário, será uma realidade.

Por que fala desse prazo?

Nesse tempo as coisas terão mudado de tal forma que teremos explorado os nossos recursos. Teremos esgotado o acesso às formas de energia não renováveis ou a água potável. Os norte-americanos fazem coisas terríveis, mas também a União Europeia, e uma delas é a superexploração da pesca das costas africanas. E se continuarmos nessa direção, nesse prazo nos veremos à beira do colapso. Os cenários são muitos. Desde o pior, uma aniquilação nuclear que acabe com os problemas porque elimina a raça humana. Ou que a vida continue, mas em Nova Guiné e no Haiti, não em Los Angeles ou em Madri. Outra possibilidade mais sutil que a guerra é que a situação siga se degenerando e a pobreza se estenda de modo que a Espanha se converta na nova Somália. A visão mais otimista é que levemos os problemas a sério e ninguém tenha que abandonar o Haiti ou a África, porque as condições sejam boas onde estão. Existe uma preocupação cada vez maior e é preciso manter a esperança. A verdadeira pergunta é se a nossa preocupação aumenta na velocidade necessária ou não. Porque o precipício está aí.

Há quem pensa que essa resposta está nas mãos de Deus.

Em momentos assim é fácil pensar isso. O Haiti sofre um terremoto das mesmas proporções da Itália, Los Angeles, Alasca, Japão... Mas em Los Angeles, quando isso acontece, se declara estado de emergência, polícia, bombeiros e exército saem às ruas, e os supermercados abrem. No Haiti, não. Por isso, quando o teleevangelista Pat Robertson diz que a ira de Deus caiu sobre eles se esquece de que é a mesma ira que cai sobre a Itália, Estados Unidos ou Japão, a mesma ira que deveria cair sobre ele por ser tão estúpido.



Haiti, Deus, o mal...e de novo o dilema de Epicuro. Artigo de Andrés Torres Queiruga


"Muitos crentes e teólogos dão por certo que Deus poderia ter evitado o terremoto do Haiti, mas que não o fez; mas, sendo onipotente, isso, definitivamente, significa que não quer. Outros, menos, atrevem-se a dizer que não pode; mas então que "deus" é esse, e quem poderá dar-nos esperança?", pergunta Andrés Torres Queiruga. teólogo espanhol, com vários livros traduzidos para o português, em artigo publicado no sítio Religión Digital, no dia 10-02-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Eis o artigo.

A catástrofe foi terrível: como um golpe na consciência do mundo, já castigado pela crise econômica. Por sorte, a reação foi quase surpreendentemente boa. Produziu-se uma espécie de salto qualitativo na solidariedade mundial tanto nos indivíduos como nos estados que, como nunca antes, compreenderam a necessidade, com rigorosa justiça, de unir-se para reconstruir um país destroçado e, antes, exaurido (o cumprirão?).

Também a teologia, na quase totalidade dos artigos publicados, soube apontar algo fundamental: não remeter o problema a Deus, centrando-se na catástrofe natural, mas insistir em nossa responsabilidade humana, no fato de que, por nossa culpa, os males causados tenham afetado antes de tudo e sobretudo os pobres. Eles sofreram e sofrem majoritariamente as piores e mais dolorosas consequências.

O que se espera não é, pois, o puro lamento ou a simples compaixão, mas a ajuda efetiva e a pressão política.

Naturalmente, também senti desejos de escrever algo, pois, ao problema do mal, dediquei uma parte importante da minha reflexão e um bom punhado de trabalhos. Por ventura, o fato de estar acabando um livro a respeito, e sobretudo a reação tão positiva que se percebia por todas partes fizeram com que me conformasse em ver e saborear o claro avanço que se produziu nas reações. Apesar de tudo, não me abandonava minha velha suspeita que algo faltava.

Tudo isso é verdade, mas o terremoto não o produzimos, e sem ele, o problema teria desaparecido pela raiz: por que Deus não o evitou? Latet anguis in herba, pensava, "a víbora segue oculta entre a erva".

"Mistério" - acabam respondendo em geral os artigos. Mas, mistério por quê? Mistério real ou contradição produzida pelas nossas ideias e pressupostos? Milhares de homens e mulheres estiveram no Haiti, renunciando o sonho e expondo a vida para ajudar as vítimas. Se na sua mão estivesse a possibilidade de evitar previamente o terremoto, haveria sequer um só que deixaria de fazê-lo?

No entanto, muitos crentes e teólogos seguem dando por certo que Deus sim poderia, mas que não o faz; mas, sendo onipotente, isso, definitivamente, significa que não quer. Outros, menos, atrevem-se a dizer que não pode; mas então que "deus" é esse, e quem poderá dar-nos esperança?

Epicuro já o tinha perguntado há muitos séculos. E, como era de se esperar, a víbora levantou a cabeça. Martín Caparrós, no El País, 07/02/2010, sem aludir ao famoso dilema - talvez sem sequer conhecê-lo - e referindo-se primeiro ao terremoto de Lisboa (1755), afirma com todo rigor: "A existência -a insistência- do mal fazia com que esse deus fosse um ineficiente ou um vicioso: ou o fazia à vontade e era o maior canalha, ou não podia evitá-lo e era um perfeito inútil".

E depois, dando um salto, irrita-se falando do Haiti: "Portanto, apesar do mal descontrolado - apesar de terremotos e de fomes, massacres e tsunamis -, milhões seguem ajoelhando-se diante de um deus que o faz ou o permite. E, para completar, ainda o anunciam. Para mim, tudo muito estranho. Se eu achasse que esse deus existisse - se achasse que em algum lugar do infinito existe um ente todo-poderoso que não usa seu poder para impedir estes desastres -, se eu achasse que há um deus tão mau caráter para matar de uma vez cem mil mortos de fome, e se esse deus fosse meu deus, meu amo, não tentaria protegê-lo: passaria a vida negando-o, dizendo a todo o mundo que não há tal coisa. O que é isso? Deus? Um deus, o que isso significa? Frente a desgraças como esta, o verdadeiro crente não tem mais remédio que fingir-se ateu - e, talvez, vice-versa. Portanto, é preciso duvidar de quase tudo, como sempre".

Hesitei em reproduzir um texto tão abrupto. Quero pensar que ao escrever deus com minúscula e colocar o condicional - "se eu achasse que esse deus existisse" - se está atacando um ídolo. Em todo caso, o afirmo eu. E, não sem lamentar essas expressões que podem ferir tão brutalmente a fé dos crentes, quero tomá-las como um sério e urgente aviso para a teologia.

O tenho repetido muitas vezes: é preciso desfazer com rigor crítico o dilema de Epicuro, descobrindo sua armadilha e mostrando sua falsidade. Em tempos de religiosidade comum e compartilhada, a fé em Deus podia sustentar-se, apoiando-se em uma confiança radical que era capaz de desafiar a lógica, porque pressentia que esta tinha que falhar em algum ponto. Isso já não é possível em nossa "era crítica".

Devemos reconhecê-lo, se não por honestidade intelectual, pelo menos porque nos reprova com argumentos contundentes: crer em um "deus" que, podendo, não quisesse acabar com o mal do mundo ou que, querendo, não pudesse, torna-se hoje simplesmente impossível.

Por sorte, a mesma agudeza crítica da modernidade abre o caminho da resposta. A autonomia das leis que regem o funcionamento do mundo e as inevitáveis contradições da finitude, fazem com que o conceito (não a fantasia) de um mundo sem maldade seja tão contraditória como um círculo-quadrado. O dilema de Epicuro tem uma armadilha: substitua-se “mundo-sem-maldade” por “círculo-quadrado” e tire a prova; ou pergunte-se, como, às vezes, faço em minhas explicações, se Deus pode ou não pode dividir a sala em “três-metades”.

Não é que Deus "não queira" ou "não possa", mas simplesmente a pergunta carece de sentido. Deus quer o bem, unicamente o bem, para o bem e a felicidade nos cria.

Falemos humanamente: poderia não haver criado o mundo, e sabe que, se o cria, terá que ser finito (se não, se criaria a si mesmo). Em consequência, a imperfeição, a carência, o conflito - o mal - o acompanharão como uma sombra terrível.

Mas a experiência religiosa mais profunda intuiu sempre que se Deus criou, é porque valia a pena; que Ele, como Anti-mal de amor infinito, acompanha e sustenta nossa aventura, convocando-nos a colaborar com Ele no trabalho do amor e a justiça; e sempre, assegurando o sentido e abrindo a esperança.

Contra o que na superfície pode parecer, nada é menos "moderno" do que deduzir o ateísmo da existência do mal no mundo. Seria desconhecer a autonomia de suas leis e a dignidade de nossa liberdade. A bobagem do tele-evangelista Pat Robertson, esclarecendo que o terremoto do Haiti que não tem nada que ver com as placas tectônicas, porque é um castigo divino, fez um grande favor à inteligência.

No mesmo jornal, Galeano o lembra, e Jared Diamond avisa, - permita-me recordá-lo para que o humor adocique um pouco o horror - que "quando o tele-evangelista Pat Robertson diz que a ira de Deus caiu sobre eles se esquece que é a mesma que cai sobre a Itália, EUA ou o Japão, a mesma ira que deveria cair sobre ele por ser tão estúpido". E, mantenhamos o tom, também sobre nós, se seguimos mantendo teologias que dão pé a tanto mal-entendido.

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