segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Operação Condor

Militar uruguaio envolvido na operação Condor contesta extradição no STF
Da Redação - 08/01/2010 - 16h35




O STF (Supremo Tribunal Federal) deverá mais uma vez analisar o caso do major uruguaio Manuel Cordeiro Piacentini, acusado de envolvimento em diversos crimes durante a operação Condor —cooperação entre regimes militares sul-americanos para a perseguição de opositores na década de 1970.

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Dessa vez, o STF deve analisar dois pedidos de habeas corpus ajuizados pela defesa do militar. Um deles contesta a extradição, autorizada pelo Supremo em agosto do ano passado. No outro, pede autorização para viajar a Porto Alegre, com o objetivo de realizar exames cardíacos.

A extradição do militar em 2009 abriu precedente que pode provocar uma reviravolta no caso de desaparecidos políticos no Brasil durante a Ditadura Militar (1964-1985). Os ministros entenderam que o sequestro de pessoas até hoje não encontradas —vivas ou mortas— é um crime em andamento, e, portanto, não está sujeito à prescrição ou anistia.

Aos 71 anos, o militar da reserva está sob prisão domiciliar na cidade de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, por determinação do Supremo, enquanto aguarda extradição para a Argentina.

O militar responde naquele país pelo sequestro e desaparecimento em 1976 de Adalberto Valdemar Soba Fernandes, cidadão argentino que à época tinha dez anos de idade.

O Uruguai, país natural do major, também pediu ao Supremo a extradição pelas mesmas razões existentes no processo apresentado pelo governo da Argentina. Mas essa extradição requerida pelo Uruguai não chegou a ser julgada, pois prevaleceu o pedido da Argentina, onde o crime atribuído ao militar ocorreu.

Segundo o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80), quando dois países pedem a extradição de alguém pelos mesmos fatos, deve prevalecer o pedido do país onde o crime foi cometido.

Os pedidos

Segundo a defesa, Piacentini sofre de graves problemas cardíacos e necessita de uma cirurgia com urgência. No primeiro habeas corpus impetrado no STF o major pede autorização para que possa viajar de Santa do Livramento, região de fronteira do Brasil com o Uruguai, para a capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, para se submeter a um exame no Instituto de Cardiologia da capital gaúcha.

Ao fazer a solicitação de viagem junto à Polícia Federal, a defesa foi informada que o pedido deveria ser encaminhado ao STF. Os advogados pedem então a concessão de liminar para a emissão de salvo-conduto.

Caso reste alguma dúvida com relação a gravidade do estado de saúde do militar, a defesa se coloca à disposição para exames periciais a serem realizados por médico designado pelo STF.

Já no segundo habeas corpus, segundo informações da assessoria de imprensa do Supremo, a defesa do militar da reserva contesta o processo de extradição. Alega que o militar sequer foi indiciado na Argentina.

Sustenta ainda que houve “omissão e violação de teses relevantes da defesa” e que a decisão relativa à extradição “não se manifestou sobre diversos aspectos e provas, que constam dos autos, sendo que da própria documentação que instruiu o pedido resulta a manifesta inviabilidade de extradição”.

A defesa alega também que houve omissão em relação ao fato de o militar ter sido anistiado no Brasil e em relação ao fato de a Argentina não ter especificado em seu pedido de extradição a não aplicação da pena de prisão perpétua, o que segundo a defesa, descumpre os tratados firmados entre os países.

Assim, a defesa pede a concessão do habeas corpus de ofício para aplicar a redução dos prazos de prescrição para os crimes atribuídos ao militar, “já que atualmente conta com 71 anos de idade, completos no mês de setembro de 2009”, e assegurar a ele o direito de não ser extraditado do Brasil.



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Discussão sobre tortura não se restringe ao passado, diz Flávia Piovesan
Camilo Toscano - 01/11/2008 - 13h20


Flávia Piovesan, prestes a completar 40 anos, é considerada um dos maiores expoentes da nova geração do Direito, sobretudo aquele trata dos direitos humanos.

Por trás de um currículo de promotora e integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos Direitos da Mulher e que hoje carrega obras como o recém-lançado Código de Direito Internacional de Direitos Humanos Anotado, da DPJ Editora, está a mulher com uma filha de pouco mais de um ano, que adora praia, cinema, música clássica e viagens e cujos livros de Sofia de Melo, Manoel de Barros, José Saramago e Clarice Lispector não saem da cabeceira.

Nesta entrevista concedida para o primeiro número da revista “Última Instância Livraria”, ela comenta sobre direito internacional, direitos humanos, Lei de Anistia, Constituição e tortura, questões atemporais que, segundo ela, não devem ser separadas em passado, presente e futuro.

Leia a entrevista

Última Instância — Por que um Código de Direito Internacional de Direitos Humanos?

Flávia Piovesan — Porque, na realidade, o que se observa é que há uma multiplicação, uma proliferação de normas, decisões, recomendações que afetam os direitos humanos. Das mais diversas ordens. Da esfera local, regional e global. E não havia, até então, uma obra que pudesse compilar, sistematizar e organizar esse repertório normativo e jurisprudencial. O Código de Direito Internacional de Direitos Humanos tem esta vocação. De um lado, identificar os principais parâmetros protetivos de Direitos Humanos, seja da ONU, da OEA, sistema de Direito Americano, sistema Africano e Europeu. Mas também o Código trabalha com uma visão holística, incluindo a dimensão trabalhista e ambiental. Sejam os parâmetros da OIT, sejam os parâmetros ambientais, penais, do Tribunal Penal Internacional, e também ligados aos refugiados. Cada vez mais, na ordem contemporânea a marca é a do diálogo horizontal ou vertical. Ou seja, que as decisões do nosso Poder Judiciário possam levar em consideração decisões, por exemplo, da Corte Européia, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Possam levar em consideração recomendações do comitê da ONU sobre a discriminação à mulher.

Última Instância — Isso cria um, ou muitos, conflitos dentro dos países. Essa matriz é única? É a mesma matriz de direitos humanos para todos os povos?

Flávia Piovesan — Os documentos internacionais de direitos humanos costumo dizer que fixam parâmetros protetivos mínimos. Admitem um piso mínimo, e não um teto máximo de proteção. Ou seja, se a legislação doméstica for além daqueles parâmetros, excelente. O que não pode é estar aquém. Eles irradiam essa consciência ética contemporânea sobre o mínimo ético irredutível. Qual o impacto dessa normatividade no Brasil? Temos diversas situações. A primeira, quando há coincidência. Cada vez mais, ao estudar os parâmetros internacionais, observamos a incorporação deles no âmbito brasileiro. Basta notar o artigo 5° da Constituição e a Declaração Universal de Direitos Humanos. Há uma coincidência. Quer dizer, a bagagem da declaração, o seu legado, se mostra esculpido aqui. Quer dizer, uma sintonia entre a ordem interna e a internacional. Há casos em que a ordem internacional preenche lacunas. Por exemplo, no Brasil não há nenhuma regra definindo o que é discriminação racial, mas aderimos a um convênio, a uma convenção, que prevê o que é isso. Quanto à tipificação da tortura, houve um julgado do Supremo que disse que temos a definição internacional decorrente deste tratado e, quando houver conflitos, aplica-se sempre a norma mais protetiva, a mais favorável ao ser humano.

Última Instância — Há juízes no Brasil que não adotam essa compreensão, que dizem “temos uma questão de soberania e não posso usar como parâmetro o internacional”. Como se consegue resolver? É só com uma palavra final do Supremo que vai sanar essas diferentes interpretações?

Flávia Piovesan — Sem dúvida o Judiciário ainda se mostra refratário, resistente a esses parâmetros. Mas fico feliz de poder responder isso hoje, porque o Supremo passa por um momento muito estratégico, em que revisita a sua jurisprudência sobre essa matéria. A decisão anterior do Supremo era: a Constituição está acima. E os tratados, versem eles sobre a exportação de abacaxis, versem sobre a abolição de pena de morte, têm paridade com a lei federal. Hoje, o Supremo revisita esse tema, na voz de seu presidente Gilmar [Mendes]. É urgente que o Supremo reassuma uma nova posição e que rompa com essa jurisprudência do passado. E, à luz de uma leitura dinâmica e evolutiva da Constituição, permita avançar e celebrar esse processo de internacionalização dos direitos humanos. Em voto recente de março deste ano, o ministro Celso de Melo tem a hombridade de confessar que está reavaliando a sua posição inicial, para defender a hierarquia constitucional dos Tratados de Direitos Humanos. Ou seja, é como se o nosso código completasse, em boa parte, a Constituição original de 1988. Teria status constitucional e viria a ampliar o que a gente chama de bloco de constitucionalidade.

Última Instância — Em que tempo isso poderia se dar?

Flávia Piovesan — Veja, nesse campo há uma divergência grande na doutrina e na jurisprudência. Mas o que creio é que uma posição do Supremo afirmativa, por exemplo, do status privilegiado desse tratado, o que posso dizer é que há dois consensos. Um: a leitura passada merece ser revisitada criticamente; dois: não podemos, diz o Supremo, emprestar-se aos tratados de direitos humanos o mesmo regime jurídico dos tratados tradicionais. Estes são os dois pontos consensuais. O ponto de dissenso é: qual é o status desses tratados? Para alguns ministros, seria de norma constitucional. Para outros, seria de norma intra-constitucional, mas supralegal. Já é um avanço. Estive recentemente, em junho, em um debate até com um ministro da Suprema Corte argentina, Raul Zafaroni, na Câmara dos Deputados, discutindo esse assunto. E o professor Zafaroni disse muito bem. A reforma que passou a Carta argentina em 1994, quando foi emendada e nela passou a constar que os Tratados de Direitos Humanos têm hierarquia constitucional, teve impacto extraordinário, porque a partir de então o Judiciário não mais discutia o assunto, passou a incorporar como norma constitucional e ponto final. Acabaram as dúvidas, as controvérsias. E aqui [no Brasil] nós ainda vivemos um celeuma que é compreender a Emenda 45/04, no que pertine a inclusão no Parágrafo 3° do Artigo 5°, que prevê que os tratados sobre os direitos humanos, aprovados em cada Casa do Congresso em dois turnos, três quintos dos votos dos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição. Todo o celeuma se atém ao alcance interpretativo desse dispositivo. Mas penso que já houve um grande avanço o Supremo entender que há de ser repudiada a visão anterior.

Última Instância — Dá para esperar algum tempo para se classificar isso?

Flávia Piovesan — Esse é um tema que eu tenho trabalhado muito, até porque o meu doutorado em 1996 foi sobre ele, então há pelo menos 13 anos acompanho pari passo. O que aconteceu? Um tema sensível, que tem a ver com essa questão: a prisão civil do depositário infiel. Há um tratado, que o Brasil ratificou, que é a Convenção Americana, que proíbe a prisão civil por dívidas e a Constituição também proíbe a prisão civil por dívidas, salvo alimentos e depósito infiel. Há um conflito. Esse conflito chegou ao Supremo. Em 1995, o que o Supremo diz? Que a Convenção Americana era incorporada em grau inferior à Constituição. Prevalecia, portanto, a Constituição e negado era o habeas corpus e mantinha a prisão civil do depositário infiel. Placar: 8 a 3 favoráveis à prisão e em outros julgados 11 a 0, porque por vezes a minoria se rende à maioria. Saltemos da história 13 anos, 2008. O placar até agora com relação ao mesmo tema é 8 versus 0 até agora, pois faltam três votos a serem definidos, contrários à prisão civil por dívida. Então, podemos ter um placar oposto ao que tínhamos em 1995. É muito alentador e percebemos que, se há uma constante do mundo, é que o mundo se transforma. Ainda bem.

Última Instância — Neste ano a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 60 anos. De lá para cá, a gente presenciou no Brasil um regime militar e suas práticas e hoje um debate sobre a existência ou não de um estado policial no Brasil. No campo internacional, apenas para citar um caso, temos os horrores frescos na memória de Abu Ghraibe. Olhando à primeira vista, a impressão que dá é que avançamos no tempo, mas recrudescemos nos desrespeitos aos direitos humanos. É isso mesmo?

Flávia Piovesan — Penso que há dois referenciais jurídicos fundamentais para este debate. Um deles é a Declaração Universal, que completa 60 anos, o outro é a nossa Constituição de 1988, que completa seus 20 anos no dia 25 de outubro. Costumo dizer que há o direito brasileiro pré e pós 1988, ao menos no campo dos direitos humanos. Porque a Constituição permitiu reinventar o marco normativo afeito a esses direitos. Por exemplo, a mais vasta legislação aprovada para o efetivo dos direitos humanos veio no pós-1988, em sua decorrência e sob sua inspiração. A lei que tipifica a tortura como crime é de 1997; a lei que pune o racismo é de 1989; o Estatuto da Criança e do Adolescente é de 1990; o Código de Defesa do Consumidor está completando a sua maioridade. Em suma, temos um repertório normativo. Qual é o impasse? Tivemos séculos e séculos, por exemplo, em que a tortura e o racismo eram permitidos. E agora nós temos o quê? Vinte anos, às vezes 15 anos. A violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha é de agosto de 2006. Ou seja, pavimentamos eticamente a ordem jurídica, esse é o primeiro passo, mas o passo mais dificultoso é a introjeção de mudanças culturais, é transformar cabeças e mentes para a abertura à causa dos direitos humanos. Porque por vezes temos o referencial jurídico, mas temos a prática, o costume, de violar direitos humanos.

Última Instância — Por que a gente ainda ouve muito a crítica à defesa dos direitos humanos e a classificação dessa defesa como sendo a defesa dos direitos dos bandidos?

Flávia Piovesan — É uma pena. Começo a minha aula do curso de direitos humanos na pós e na graduação com essa pergunta. O conceito e o pré-conceito sobre direitos humanos. De fato, uma visão pré-conceituosa é essa distorcida de que a defesa dos direitos humanos é a defesa dos criminosos. E para nós não. Penso que é importante reforçar a idéia de quem defende os direitos humanos defende o direito de todos. E de todos os direitos. À saúde, à educação, ao trabalho, ao lazer, à alimentação, à proibição da tortura, à vida, à liberdade e assim por diante. Creio que é fundamental, e o Código Internacional de Direitos Humanos reforça esse propósito, contribui extraordinariamente para esse propósito, reforçar essa visão de que os direitos humanos envolvem essa visão holística. Direito ao meio ambiente. Quem defende o meio ambiente defende os direitos humanos; quem defende uma educação de qualidade defende os direitos humanos. Isso é fundamental.

Última Instância — Em certo sentido, dá para dizer que os organismos internacionais parecem ter perdido força diante da atuação de grandes nações, mais especificamente dos Estados Unidos, com relação à defesa dos direitos humanos. Um grande exemplo disso é o papel da ONU relegado a segundo plano durante o conflito no Iraque, que ainda persiste. Como mudar essa situação? É difícil de falar hoje de uma humanidade una?

Flávia Piovesan — Creio que as Nações Unidas mereçam uma profunda reforma. A ONU ainda reflete a geopolítica de seu tempo, de 1945, vide a formação do Conselho de Segurança, quem são os membros permanentes, e assim por diante. A ONU foi criada em um cenário em que o mundo era habitado, em média, por 70 Estados. E hoje nós temos 200.

Última Instância — Você acha que tem que acabar o Conselho de Segurança?

Flávia Piovesan — Não. Temos que redefinir a ONU. Sou do time que defende uma ONU melhor. É melhor um mundo com ela do que sem ela. Mas ela vive uma crise de identidade ao longo desses anos. O que eu penso que é necessário? A ONU se inspira em três propósitos básicos: manter a paz e a segurança internacional; promover a integração internacional no campo social e econômico; e promover os direitos humanos. Só que não há a paridade desses três propósitos. O orçamento da ONU está muito mais na repressão às guerras, no tema da guerra e segurança, do que dos direitos humanos. Lembro de ter participado de uma seção da ONU quando Sérgio Vieira de Melo estava presente e dizia que o orçamento da ONU para direitos humanos era de 2,8%. E não há melhor política preventiva a conflitos do que apostar nos direitos humanos. Então, esse é o primeiro ponto, balancear melhor os seus três propósitos. Segundo, a ONU teria que se tornar um órgão mais democrático e mais um reflexo da geopolítica de 2008. Como? Revitalizando a Assembléia Geral, que é o nosso Senado mundial, que é o nosso mosaico em que todos os Estados têm representatividade. Fortalecendo sua justiça, a Corte Internacional de Justiça até hoje só tem acesso Estados e penso que teria que ser aberto a outros campos, como as organizações governamentais. E revisando o Conselho de Segurança, porque a estrutura é absolutamente não-democrática. Por aí já seria um ótimo caminho para uma agenda de fortalecimento da credibilidade das Nações Unidas. Também tem outro aspecto muito debatido aos direitos humanos. Como eu dizia, há um mundo pré e pós-1988 no Brasil; no mundo ocidental, um mundo pré e pós-1945. Por exemplo, no campo internacional, o direito aos direitos humanos veio no pós-1945, em resposta às barbáries totalitárias da era Hitler. Isso acaba envolvendo a necessidade de refletir sobre a soberania estatal, porque os direitos humanos se projetam na arena global, como tema de legítimo interesse da comunidade internacional, isso demanda uma releitura de soberania. Até porque [Jürgen] Habermas [filósofo alemão] menciona: quem é soberano? É o Estado, é o povo? A soberania deve respeito também aos direitos humanos? Há esses debates. Mas saímos de uma época em que havia o princípio da não-intervenção dos Estados, em nome da soberania absoluta, passamos para uma segunda fase em que há o direito de ingerência e hoje há uma terceira fase em que se questiona muito as omissões da ONU em que se fala na international responsibility to protect [literalmente, responsabilidade internacional de proteger]. Ou seja, não mais em um direito de ingerência, mas quase um dever de ingerência quando há graves violações de direitos humanos. Gravíssimas violações de direitos humanos, como genocídios, não hão de merecer a indiferença internacional.

Última Instância — Isso se junta também com um debate recente, que impera no Brasil, que é a questão da Lei da Anistia. A sra. tem defendido o argumento de que tortura é um crime contra a humanidade e que, por isso, é imprescritível. Por quê?

Flávia Piovesan — A tortura, pela sua gravidade, aponta a uma perversidade, no prisma internacional. O Estado que garante direitos e passa a ser assassino e delinqüente, porque, no âmbito internacional, o crime de tortura é um crime próprio, que demanda que o sujeito ativo seja alguém ligado direta ou indiretamente ao Estado. Veja bem: no Estado Democrático de Direito, quem tem o monopólio da força é o Estado. Nós nos desarmamos e entregamos as armas ao Estado. Pagamos impostos, tributos. E esse mesmo Estado se vale dessas armas para nos torturar. Então, penso que é um crime de extrema gravidade, que viola a ordem internacional, que afronta a humanidade e, por isso, é um crime imprescritível, insuscetível de anistia. É a visão que tenho. Isso corroborado em convenções internacionais, no costume internacional, na jurisprudência internacional. E também entendo que o Brasil tem um débito. O que se chama de transitional justice [da justiça de transição]. A pergunta é: como é que saio de um regime autoritário e percorro esse ritual de passagem para uma ordem democrática? Trago o trabalho da Katherine Seeking, que aponta em uma pesquisa extremamente consistente, à luz de todo o Cone Sul, que os países que fizeram essa transição e que trabalharam com os mecanismos da transitional justice permitiram fortalecer o regime de direitos humanos, o Estado de Direito e o Regime Democrático. O que seria a justiça de transição? Envolveria, de um lado, o direito à verdade, o acesso aos arquivos em nome de um bem coletivo e de um bem individual. Permitiria o direito à justiça, que é investigar, processar e punir aqueles algozes daquele regime. Em uma notinha de rodapé, em duas semanas, a Justiça argentina condenou à prisão perpétua militares que torturaram. Sou contra a prisão perpétua, mas lá esse é o debate. Enquanto que aqui eles continuam sendo nome de praças, de ruas e assim por diante. Além do direito à verdade e à justiça, um terceiro aspecto seria o direito à reparação. Indenizações. Nisso o Brasil têm feito algo, com as comissões de anistia. E um quarto aspecto, que me parece bastante importante, é o das reformas institucionais, porque na ordem democrática herdamos instituições como Forças Armadas, Polícia Civil e Polícia Militar. Incólumes, como se nada houvesse se passado. Penso que reformas de instituições são fundamentais para uma solidez democrática. E aquele perigo que muitos assinalam: “Ah! Mexer com isso é mexer com o passado! Isso vai causar instabilidade, golpe etc”. O que essa pesquisadora comprova, neste consistente estudo, é que não. Mostra o oposto, mostra que a população crê na lei, no Estado de Direito porque vê que a lei alcança não só os ordinários cidadãos comuns, mas as autoridades, que não são mais blindadas. Isso reforça a ética republicana. Também aquele que vai ingressar na instituição, por exemplo, Forças Armadas ou polícia, vai saber que torturar é algo do passado. No Brasil, temos ainda um continuísmo autoritário na ótica democrática. Por que a tortura persiste? Como diz o ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, essa não é uma discussão que tem a ver só com pagar contas do passado, é uma discussão do presente e do futuro. Qual é o presente que queremos e o futuro que queremos? Para isso, temos que olhar para trás.

Última Instância — E os críticos que dizem que essa visão é, em certo sentido, uma visão revanchista?

Flávia Piovesan — Entendo que não haveria qualquer revanche, até porque boa parte daqueles que reagiram ao regime ditatorial foram torturados. De alguma maneira, foram sancionados de forma arbitrária no sistema. O que nós queremos? Revelar essa verdade. Isso permite um amadurecimento no que tange a construção da nossa identidade coletiva. Pelo menos os arquivos. E digo mais: se não fizermos, alguém o fará. Exemplo: a Justiça italiana, no final do ano passado, determinou a prisão de três militares brasileiros. Por terem participado ativamente da operação Condor, entregando três ítalo-argentinos à Argentina e lá eles desapareceram forçosamente. Já está aberto o caso no âmbito internacional com base na convenção contra a tortura. Uma outra saída é, ora, os crimes de desaparecimentos forçados são crimes continuados, permanentes, enquanto não houver informação precisa dos corpos, das circunstâncias desses crimes etc. Se não há a abertura dos arquivos, se há, pasme, uma lei, a 11.111/05, que cria a categoria dos documentos ultra-secretos, que podem permanecer em sigilo eterno, esses crimes se tornam crimes abertos, uma injustiça continuada e permanente. E, praticados que foram de forma geral e sistemática na ditadura, são crimes contra a humanidade, que são da competência material do Tribunal Penal Internacional. Então, é sustentável esta tese. De que os militares poderiam até responder perante o Tribunal Penal Internacional, caso nada seja feito.

Última Instância — Por esta legislação, o que classifica o que é ultra-secreto? É o próprio Estado?

Flávia Piovesan — É o próprio Estado. Em nome da soberania nacional.

Última Instância — O Brasil tem cumprido os tratados internacionais de defesa dos Direitos Humanos dos quais é signatário?

Flávia Piovesan — Creio que há hoje avanços, porque direitos humanos na ditadura era uma agenda contra o Estado e hoje temos a visão de que direitos humanos são elemento crucial, o ingrediente fundamental para a democracia do Estado de Direito. E temos uma pasta, temos um Ministério de Direitos Humanos. Então, passou a ser tema de política pública, o que é um avanço. Mas prosseguimos com as violações sistemáticas, somos o quarto país mais desigual e o quarto mais violento do planeta. Não por mera coincidência. Mas termino como comecei, com Hannah Arendt, quando ela lembra que é possível modificar, pacientemente, o deserto com as faculdades da paixão e do agir. E ela lembra que, se todos temos o mesmo destino, que é a morte, passemos a começar porque o ser humano é, ao mesmo tempo, o início e o iniciador.










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