segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Desigualdade

 Desigualdade entranhada n’alma
Regina Bruno
            Em dezembro de 2013, um grupo de jovens da periferia São Paulo, ao perceber que o mundo virtual não basta para o florescimento de amizades, decidiu programar um rolezinho em um dos shopping centers da cidade para conhecer seus 15 mil seguidores das redes sociais. Relativizavam, com essa proposta, os estudos que davam por findo o contato físico como parte das relações de sociabilidade, fazendo-nos perceber que as redes sociais trazem novos modos de ação coletiva, de questionamento e de adesão que se somam a práticas já conhecidas.
Os inúmeros rolezinhos que a partir de então se espalharam pelas cidades e a reação a essas manifestações coletivas de jovens nos mostram o quão profunda é nossa desigualdade social, colocando-nos diante de um universo claramente dividido entre os estabelecidos e os outsiders – configuração reveladora de toda relação de poder.
            Estabelecidos e outsiders que se definem na relação que as nega e que as constituem como identidades sociais. Indivíduos e grupos ao mesmo tempo separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência e de poder, diriam Norbert Elias e John Scotson.
            Os estabelecidos se reconhecem e amiúde são reconhecidos como os membros da “boa sociedade”. São os bem-vindos frequentadores e consumidores dos shoppings centers; os supostos guardiões do bom gosto e das boas maneiras que encarnam os valores elitistas da distinção. Eles, quando entrevistados pela mídia, descartaram toda e qualquer possibilidade de diálogo e sugeriram a proibição de acesso por parte dos jovens que participam dos rolezinhos e de seus aliados a essas “Catedrais das mercadorias” como diria Valquíria Padilha, socióloga. Exigiram a intervenção policial como única garantia de proteção, de tranqüilidade e de segurança.
            De outro lado, os jovens da periferia das cidades: considerados os “não membros”, os “não clientes”, os “indesejados”, aqueles que se encontram “fora da boa sociedade”. Recorrentemente estigmatizados por atributos característicos de uma situação de anomia: os sem identidade, os sem educação, os sem distinção. Chamados pela mídia como gente marginal e arruaceira. 
            Jovens que procuraram quebrar a barreira da invisibilidade e vão aos shoppings – espaço dos estabelecidos – pelos mais diferentes motivos: por ser “o lugar de muita mulher bonita”; porque “se sentem bem ali”; “para paquerar”; “para verem e serem vistos”; “porque o shopping é a praia dos paulistas” ; para “comprar roupa de marca” ou porque na comunidade “não tem praça, nem lazer”.
            Desigualdade, veiculada pelas autoridades instituídas ou difundida pela mídia e analistas de plantão, regida pela lógica da exclusão que se revela das mais diferentes falas, modos e meios
            Desigualdade, sinônimo de humilhação, indicando uma escala de valores na qual as relações baseadas na reciprocidade e reconhecimento do outro se encontram profundamente desvalorizadas.
            Desigualdade que se nutre de intolerância e de preconceitos os mais diversos. Alimenta-se e alimenta o medo diante de manifestações coletivas que fogem aos cânones socialmente estabelecidos. Que segrega, não dialoga, sente-se ameaçada, ameaça e proíbe toda e qualquer manifestação que possa ir de encontro às regras nem sempre claras e sempre autoritariamente estabelecidas. Que dilacera cotidiano desses jovens porque não os reconhece e os ignora. Que associa a riqueza de uns à privação de outros. Que pressupõe a objetivação, a “desvalorização do mundo humano e a valorização do mundo das coisas” como bem afirma Marx em Os Manuscritos de 1844.
            Desigualdade unicamente preocupada com a possibilidade de adesão dos “indesejados” sem terra, sem teto, sem direitos ou de apoio dos temidos blackblocs. Inquieta diante da perspectiva de retorno do “clamor das ruas” em tempos de copa e de eleições; temerosa pela possibilidade da violência, da “politização” e da reivindicação por direitos os mais elementares.
            Desigualdade como imposição sobre quais lugares, públicos ou privados, é permitido correr, cantar, gritar, fazer algazarra, zoar, mostrar-se aos outros. Que estabelece aos jovens e às gentes das comunidades mais pobres qual espaço é permitido viver e prescreve a invisibilidade de todos. Alimentada por constrangimentos, humilhações, boletins de ocorrência, revistas, racismo, hostilidades.
            Desigualdade que reforça os componentes ideológicos do domínio; reafirma o peso das distinções; estabelece condições, posições e subalternidades; ignora manifestações que nascem das necessidades desses jovens. Que atesta o quão insuficiente e frágil é o processo de distribuição de renda advindo de políticas públicas num pais, segundo Florestan Fernandes, regido por castas sociais.
            Enfim, uma desigualdade que desvela e anuncia de alto e bom som o imenso descaso das elites, das autoridades e de parte da sociedade para com essa juventude que ora mostra a sua cara.
Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2014.
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Regina Angela Landim Bruno
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