sábado, 27 de março de 2010

Mulheres Relatam Torturas em Livro

Mulheres relatam em livro torturas durante a ditadura
Maria Inês Nassif, de São Paulo 26/03/2010 Jornal Valor Economico




Maria Inês Nassif, de São Paulo

"Paulo, Paulo, deixe eu falar que nem os sem-terra", disse a ex-presa política, ex-militante das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN) Áurea Moretti, interrompendo um discurso do ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Paulo Vannuchi. Magra, com cabelos brancos e muitas falhas nos dentes, a enfermeira de Ribeirão Preto levantou os braços frágeis e esclareceu como era falar como um sem-terra: "Pau de arara, nunca mais!"

Era uma palavra de ordem que propunha às cerca de 500 pessoas que se acotovelaram no auditório do segundo andar do prédio novo da PUC de São Paulo, para o lançamento do livro "Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura". O livro contém a história da vida e da morte de 45 mulheres brasileiras no período da ditadura, por responsabilidade do Estado, e o relato de 27 outras que sofreram as brutalidades do regime e sobreviveram. Foi editado pela SEDH e pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Áurea foi presa em outubro de 1969 e barbaramente torturada. Cumpriu três anos e três meses de uma pena de 4,5 anos de cadeia e saiu sob condicional - e, como as demais mulheres que estavam lá e deram seu relato para o livro, acha que, de sua parte, a anistia foi inócua: afinal, ela cumpriu pena; seu torturador nem foi processado pelos crimes que cometeu. "Uma vez eu vi um deles na rua, estava de óculos escuros e olhava o mundo por cima", disse, depois da solenidade. "Eu estava com a minha filha e tremi."

A intervenção da senhora de jeito humilde e sotaque interiorano foi um dos pontos altos de emoção do lançamento do livro. Na plateia, estudantes da universidade que foi palco de momentos de resistência à ditadura militar de 1964-1985 - a invasão da PUC, em 1977, pela polícia do coronel Erasmo Dias, não ocorreu sem uma firme oposição da reitora Nadir Kfouri -, junto com militantes de direitos humanos e de movimentos feministas, aplaudiram intensamente os participantes.

O ministro Paulo Vannuchi esclareceu que não era "revanchismo" o livro, como também não o é o atacado 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos, que propõe a criação de uma Comissão da Memória e Verdade. "Ninguém propõe a tortura" contra os torturadores, afirmou, mas a "construção do futuro" a partir do conhecimento do passado. Sugeriu que, se cada membro do oficialato das Forças Armadas - que se opõe de forma dura à constituição da comissão - ler o livro, todos eles verão que "não tem cabimento essa violência [a tortura] seguir sendo atribuída à toda Arma, à toda instituição militar".

O lançamento do livro foi o primeiro evento da SEDH ligado diretamente à questão da memória dos atos da ditadura após o lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, em dezembro, que provocou reação do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e dos comandantes militares, além de resistências de produtores rurais, setores da imprensa e da igreja - devido à defesa de mediação de conflitos agrários, a afirmação de "controle social" da imprensa e defesa do aborto. Vannuchi disse que o programa defende uma completa liberdade de imprensa e ele, ministro, também, e afirmou que, mesmo com os "muitíssimos problemas" da imprensa brasileira, "eles seriam agravados" se houvesse uma única imprensa, estatal. Afirmou, no entanto, que a SEDH não recuou das reivindicações feministas, nem da defesa de mediação de conflitos no campo - "para evitar mais sangue" -, mas fez alterações no texto original mantendo as propostas definidas pelas diversas plenárias que desaguaram no 3º PNDH.

"Agradeço a Jobim por ter tornado pública essa discussão", afirmou a representante de familiares de desaparecidos políticos, Rosalina Santa Cruz. "Sua iniciativa de dar munição aos conservadores deu para nós um novo ânimo para a luta". Na defesa do resgate do passado para a construção do presente, Rosalina lembrou que a tortura ainda é um dado da realidade brasileira e, nas delegacias, pune o jovem, o negro, o pobre e a mulher. "Tortura é castigo, é vingança, se arrebenta o indivíduo para que ele nunca mais possa retomar o que estava fazendo. Hoje a tortura é feita para evitar novas transgressões", disse Rosalina, ela própria vítima da tortura na época da ditadura, junto com seu marido. Seu irmão, Fernando Santa Cruz, é desaparecido político. E ela considera que, de sua parte, pagou o preço. "Nós fomos presos, cumprimos prisão; eles (os torturadores) sequer foram processados". Para Flávia Piovesan, professora da pós-graduação da PUC-SP e procuradora do Estado de São Paulo, é "inconcebível tratar a tortura como crime político". Ela lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos consideram que as leis de anistia "perpetuam a impunidade".


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