segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Angola

«A saída para o desenvolvimento de Angola está na formação de quadros» JA

O professor titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Brasil), considerou em entrevista ao Jornal de Angola que o ponto forte de Angola é de ser um país fiável, e que tem uma unidade e uma vocação universal.

Segundo o especialista, dentro das suas particularidades, Angola tem um equilíbrio entre o lado tradicional e o moderno e que a saída para o seu desenvolvimento está na formação de mais quadros.

P– A crise económica e financeira mundial já passou?

R – Não sei, graças ao Presidente Obama, que teve coragem, como Roosevelt na outra crise, e tomou medidas extraordinárias, arriscadíssimas, foram contidos, um pouco, os efeitos da crise.



P - O tamanho desta crise surpreende-o?

R – Não, há 10 anos, nos meus cursos, já chamava atenção dos meus alunos que tudo isso ia estourar. Antigamente, a moeda tinha duas garantias: fundo ouro, que acabou, e os bancos, que eram obrigados a recolher um terço ou um quinto do dinheiro que entrava como reserva obrigatória no Banco Central. Isso diminuiu. Inventaram uma coisa diabólica que se chama derivativos. Em 2003, com os derivativos, reemprestavam um dólar dez vezes. Na crise, pelos boletins do Banco Mundial e outras instituições, apercebi-me que estavam a reemprestar um dólar 36 vezes. Se não há garantia ouro, se não há reserva obrigatória no Banco Central, é um dinheiro fictício. Há muita gente que pensa que é rico mas não tem nada.

P- O que falhou?

R - Faltou vergonha na cara. O que temos é um grande roubo mundial por parte dos executivos dos bancos. Hoje, nos EUA, há muito mais bancários presos. Estas pessoas inflacionaram os salários de forma brutal e, como queriam ganhar cada vez mais, reemprestavam o dólar não já por dez, mas por 36 vezes. Se em duas ou três operações, por um azar qualquer, alguém deixa de pagar, esta pirâmide estoura. Foi o que aconteceu.

P– Onde é que estava o Estado para regular e fiscalizar o mercado?

R – Veja bem, estamos a viver num sistema capitalista e não vamos negar a liberdade do sistema capitalista. Penso que o máximo que podemos fazer é que os bancos centrais segurem mais os bancos comerciais, tenham uma vigilância maior sobre eles e exijam uma parte dos depósitos como reserva obrigatória no Banco Central. Arranjar uma regulação internacional, apesar da ideia ser muito boa, não acredito que se possa pô-la em funcionamento. É possível que dentro de dez anos haja uma reformulação do Conselho de Segurança e, entre 20 e 30 anos, quem sabe, face aos novos paradigmas da terceira revolução mundial, as Nações Unidas venham a ser reformuladas. Antes disso, não vamos ter regulação nenhuma.

P- O que é urgente mudar nas Nações Unidas?

R - No final da I Guerra Mundial, o mundo criou a Sociedade das Nações, com sede em Genebra, que propôs um pacto internacional, que dizia o seguinte: parágrafo primeiro, a partir de hoje não há mais guerra. Dez anos depois, Hitler invadiu a Europa e o tal pacto sumiu-se. O preâmbulo das Nações Unidas fala da associação dos povos, não fala em Nação, não fala em Estado. Hoje, as soberanias estão a desfazer-se, o mundo está cada vez mais internacionalizado. Mas bastou uma crise internacional e os europeus, que estavam em abertura de mercado e de fronteiras, tornaram-se xenófobos e os imigrantes são mal tratados. Continuo a acreditar nas utopias e na obrigação de fazermos aquilo que podemos pelo bem social.

P- O papel das Nações Unidas já não se adequa ao momento actual?

R - Acho que não, por uma razão muito simples. A Sociedade das Nações alicerçou-se na primeira revolução industrial. As Nações Unidas também se alicerçaram numa economia da primeira revolução industrial. Estabeleceu- se uma série de ideias de que era preciso fortalecer as economias, abri-las mais. Hoje, a diferença reside em quem tem e quem não tem tecnologia.

P - O que devem fazer os países subdesenvolvidos para sair desta situação?

R- Por exemplo, aqui em Angola ou se dá o salto para altíssima tecnologia, principalmente para as Tecnologias de Informação e Comunicação ou seremos sempre importadores das ideias dos outros. Ficar só como receptor não dá. O Brasil rompeu com essa ideia depois da II Guerra Mundial, a Índia hoje tem tecnologia altamente sofisticada, o Paquistão também, a China está a lutar por isso. Que se produza matérias-primas alimentares é bom e é preciso, mas, do ponto de vista tecnológico, isso não serve para subir degraus. Ou partimos para tecnologias de ponta ou estamos sempre a importar técnicos especializados para fazer aquilo que não sabemos.

P - Está a dizer que as prioridades não estão bem definidas?

R - Creio que sim. Acho que temos de apostar no ensino e na tecnologia. Mas num ensino que não seja uma reposição deste ensino tradicional do tempo colonial. Temos de ir para um ensino altamente qualificado e formar quadros.Sou professor de Direito e vejo muitos alunos com códigos na mão e eu digo-lhes: podem deitar fora o código. Eles ficam admirados. Entendo que o necessário é eles terem a racionalidade para entenderem o que está no código e, principalmente hoje, nas convenções internacionais.

P- Quais considera serem hoje os pontos fortes e os pontos fracos de Angola?

R- O ponto forte de Angola é ser um país fiável, que tem uma unidade e uma vocação universal. Dentro das suas particularidades faz um equilíbrio entre o lado tradicional, o moderno e a concepção nacional e regional. Hoje, estamos na dúvida se vamos ficar na África Central, na Austral ou nas duas. Sem querer ser agradável ao Presidente José Eduardo dos Santos, vejo nele uma qualidade extraordinária, assim como Agostinho Neto, que era o homem da praxis, de aguentar a luta. O Presidente José Eduardo dos Santos é um homem que criou um quarto poder. O que é isso? Existe o Legislativo, o Executivo e o Judicial. No Brasil, até há um século, tínhamos um quarto poder que é o moderador. Vejo na presença do Presidente José Eduardo dos Santos um elemento moderador da política interna. Este poder moderador do Presidente José Eduardo dos Santos está a permitir, de certa forma, um equilíbrio regional e internacional, e uma prudência da parte dele não ir na conversa de modelos. Agora inventaram transformar a SADC num mercado comum, começando por uma região aduaneira.

P – A ideia de um mercado comum não é benéfica para Angola?

R - Será bom quando os países da SADC tiverem condições de formar essa região aduaneira. O facto de Angola não ir nessa conversa é benéfico. Por exemplo, o Mercosul é, ainda hoje, uma união aduaneira imperfeita, porque há situações diversas em cada um dos países que o integra. Na Europa, há a Alemanha que pagou a conta dos que não têm dinheiro. Em África isso não existe. Têm de se dar compensações, como se deu na Europa. Aqui, em África, existe uma porção de países que ainda dependem das Alfândegas. Se acabam com elas, onde é que vão buscar dinheiro para pagar o médico, o polícia, o professor? Que isso seja uma meta, estou de acordo.

P– Qual seria afinal o papel da SADC?

R – Um aprendizado integrativo, que leva a uma prática integrativa aos poucos. No fundo, é a grande proposta das Nações Unidas, de não ficar só pelos acordos de natureza bilaterais. Uma coisa crucial que a SADC está a fazer é a integração dos sistemas das redes eléctricas dos países que compõem a região, certas políticas aduaneiras, certas políticas de rodovias, o problema central da água, que Angola tem resposta na mão. A África do Sul não tem água e os outros também não. Este é um problema seríssimo de que ninguém quer falar. A SADC, aos poucos, vai criando legislação, com esforços diplomáticos, no sentido de, daqui a alguns anos, se poder fazer, então, a União Aduaneira, mas não uma União Aduaneira só de conversa fiada. Penso que isso pode ser feito dentro de 20 anos, mais ou menos. Ainda hoje ouvi falar no NEPAD e apanhei um susto. Sinceramente, não acredito nisso. É uma ideia muito bonita, mas o que é que se fez em nome da NEPAD? Há alguma indústria criada em nome do NEPAD? Claro que não.

P - Disse que Angola tem uma boa liderança. O que falta então para se desenvolver?

R – Formação de quadros e reforma do ensino. O actual quadro do ensino em Angola é um quadro europeu do século passado, mas de europeu continental. Angola tem vizinhos que falam francês e inglês. Eu apostaria muito mais numa aproximação aos anglo-saxónicos. É preciso criar universidades bilingues pelas regiões do país e, de uma vez por todas, pôr os angolanos a falarem inglês, que é, cada vez mais, a língua universal. Enquanto os angolanos falarem só português e a língua materna ou, os que estão no Norte, um pouco de francês, estão sempre fora do comércio mundial. Hoje, quem está no comércio mundial é a Sonangol, mas não se pode ver o futuro de Angola só a partir do petróleo. O petróleo possibilitou a renovação das Forças Armadas, a reabilitação dos aeroportos, das estradas, mas se não se desenvolver uma classe média produtiva de pequenos e médios industriais eficientes e produtores, o país não vai para diante.

P- Mas países como Angola ainda beneficiam dos direitos preferenciais para exportar sem taxas para Europa. Não é mais um benefício?

R - Ajuda um pouco, mas não resolve o problema. Angola tem de aproveitar este período para resolver o problema interno e ter gente, aqui, que produza de facto e não estar numa situação de uma economia sub-sahariana de natureza rendeira, como dizia o antigo ministro da Indústria Emanuel Carneiro. Temos de ultrapassar esta fase e passarmos a ser produtores. Para isso, o país precisa de quadros. Enquanto tiver um ensino tradicional, em que o jovem sai da universidade e não sabe nada, como é que vai conseguir criar?

P - Defende um ensino mais virado para o trabalho?

R - Não só. O ensino técnico tem de arrancar juntamente com o ensino universitário. Mas que ensino universitário? De alunos que ficam por aí a papaguear códigos? Ou que vão ser preparados através de métodos de ensino racionais para que possam pensar?

P– Como é que se faria essa transformação em Angola?

R – Preparando quadros e professores e dando condições para o professor se dedicar, se não em tempo integral, pelo menos parcialmente, numa linha de investigador. Enquanto houver professores a dar aulas em cinco faculdades, que chegam atrasados devido ao trânsito, fazem a chamada, dá meia hora de aulas porque têm de ir para outra faculdade, não há ensino.

P– Neste caso, o país precisa de importar mais professores….

R – Há muita gente boa em Angola. Os quadros estão deslocados. No tempo da guerra, tudo que pensava, o Exército, inteligentemente, enquadrava. Vejo pessoas muito bem formadas a fazer outras coisas, por uma questão meramente financeira. É verdade que em Angola faltam quadros, mas há quadros disponíveis muito bons, só que estão colocados noutras áreas. Eles podem ir para o ensino, mas é preciso pagar-lhes um salário condigno. Há um esforço brutal do Ministério da Educação para criar uma rede de ensino técnico com apoio de chineses. É uma coisa notável. Há o esforço da Secretaria de Estado do Ensino Superior para criar regras para o Ensino Universitário. Perfeito. Agora pergunto, onde é que está o dinheiro e a formação dos professores para o ensino universitário e ensino técnico?

Ou se aposta com coragem na formação de quadros ou não teremos desenvolvimento. Vejo Angola como uma nação em crescimento, que saiu do inchaço para um certo crescimento. Só lhe falta dar um empurrãozinho, que é a aposta no ensino. A saída para este país está na formação de quadros. Agora, há a mania de falar em desenvolvimento, mas muitos não sabem o que é isso. Só hoje já ouvi falar mais de 50 vezes sobre desenvolvimento sustentado, mas metade das pessoas não sabe o que é.

P– E o que é o desenvolvimento sustentado, na sua opinião?

R – Algo que não perseguiria unicamente o lucro financeiro, mas que levasse em linha de conta o desenvolvimento social. Antigamente isso era proposta dos marxistas, dos socialistas. Hoje dizem que não há ideologias, o que também acho que é uma mentira. O próprio Barack Obama está a nacionalizar bancos, o que era algo impensável na pureza do liberalismo tradicional. A ideia de desenvolvimento sustentado seria: crescer sim, é bom que se fique rico, mas não esquecer que se vive em comunidade e que tem de contribuir para ela, não ficar apenas pelo capitalismo selvagem. Isso ia levar-nos à destruição do modelo e à nossa própria destruição.

P – Qual deve ser o papel do Estado na economia?

R – Ultimamente surgiram uma série de ideias de cada vez menos Estado e deu no que deu. Não houve o mínimo de fiscalização por parte dos Bancos Centrais e deu neste escândalo e neste estouro da banca internacional. Como um primeiro patamar para chegarmos à regulação, defendo mais fiscalização. Porque por decreto, não se faz nada. Fazia-se quando tínhamos governos de linha dura, linha rígida, em que todos tinham de cumprir. Hoje, se fizer um decreto na Europa, em África ou no Brasil e se não houver uma certa opção dos cidadãos para o aceitar, ele morre sozinho, não vinga.

P – Vários líderes empresariais dizem que o excesso de regulação também tende a inibir a inovação…

R - É verdade, não há dúvida. A regulação tem de ser dinâmica. Se o país tiver boa formação de economistas, não apenas de econometristas. Acho que a matemática, as línguas e a filosofia deviam ser disciplinas obrigatórias para as pessoas abrirem o pensamento, saberem pensar.

P- Disse que a prioridade era a educação. Num país como Angola, com muitas dificuldades, não se estaria a preterir outros sectores, como a saúde, e aumentar ainda mais os problemas?

R- Na Coreia do Sul resolveram o binómio educação-saúde. Os coreanos tiveram a coragem de fazer um pacto social entre o Estado, os empresários e os operários, pondo a educação em primeiro lugar. A saúde ficou em segundo lugar. Diziam eles: nunca tivemos saúde, por isso, mais 10 anos sem médicos, aguentamos. Era um país que não tinha cultura tecnológica, não tinha máquinas, e hoje tem tecnologia própria. Porquê que Angola não pode fazer se tem todas as condições. É a única solução. Se o país não aposta na formação de quadros, continuamos a ser periféricos e a trabalhar para os outros.

P– Que lições os países como Angola podem tirar da crise económica e financeira mundial?

R- No fundo, basta ligar os pontos positivos e negativos e verificar como Angola pode dar o salto. Se não, continua a inchar e não crescer. Este é o grande perigo. O petróleo foi a alavanca das Forças Armadas, em tempo de guerra, e está a ser a alavanca da reconstrução. Tenho a impressão que agora podia fazer algo mais, ser a alavanca do ensino. Não do actual, mas do renovado.

P– Como avalia o comportamento das instituições de Bretton Woods diante da crise?

R - As Nações Unidas foram criadas em cima dos paradigmas da primeira e da segunda revolução industrial e hoje estamos na terceira revolução industrial e na primeira revolução mundial de serviços. Estes paradigmas vão obrigar à criação de uma nova organização internacional que tenha em linha de conta essa verdadeira revolução que está a ocorrer no mundo económico e financeiro. Claro que vai levar tempo, não é de um dia para outro. A China falou numa nova moeda, muitos falam em nova moeda, mas a Europa criou o Euro e não é moeda internacional. Fala-se em substituir o dólar, mas onde é que está a outra moeda, onde é que está o ouro, onde é que estão as garantias para a nova moeda? As pessoas ouvem estas ideias mirabolantes e acreditam como se fosse verdade. Enquanto isso, o Norte continua a crescer e nós fingimos que crescemos. Fazemos um discurso de primeiro mundo, mas não nos inserimos internamente no primeiro mundo.

P– Não acha que os países ricos têm culpa nisso e que as suas acções ajudam a perpetuar a pobreza, a dependência….


R– Eles têm, mas nós temos mais. Já chega de culpar os outros. Cada um de nós é que tem de sair do buraco. É preciso consciência e optar por um ensino racional, modelo anglo-saxónico. De contrário estaremos a formar papagaios.


Fonte: www.angonoticias. com


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