quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Cartas da Prisão

fevereiro de 2009 -





Cartas da Prisão




Marco Morel *






"Estas cartas representam um dos mais altos documentos de autenticidade humana e de beleza literária que jamais se escreveram no Brasil". Com tais palavras, há três décadas, o crítico literário e pensador católico Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) saudava a primeira edição em português das correspondências escritas na prisão entre 1969 e 1973 pelo jovem dominicano Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), detido por apoiar a luta armada contra a ditadura implantada no país. Agora, o público volta a ter acesso à obra (com algumas novidades editoriais), que pertence à linhagem de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.

O livro percorreu sinuosa trajetória, digna de textos proibidos e malditos: cartas e bilhetes fragmentados, sem intenção de publicar-se, saíam escondidos dos presídios onde eram redigidos para os destinatários (muitos dos quais só têm nomes revelados na atual edição, que traz notas explicativas). Começaram a circular clandestinos, de mão em mão, reproduzidos em mimeógrafo (tinta azul e cheiro de álcool), chegaram ao exterior e, driblando a censura do regime militar brasileiro, inicialmente foram publicados em italiano, francês, sueco, espanhol, holandês, alemão e inglês. Traziam o tom profético e luminoso dos cristãos das catacumbas que teimavam em cantar a vida e anunciar novos tempos, em meio às sofridas trevas. Causaram forte impacto ao serem lançados no Brasil em dois volumes (Cartas da Prisão e Das Catacumbas) pelo corajoso e inovador Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, entre 1977 e 1978, esgotando edições sucessivas e marcando as gerações que adentravam na cena pública no início da abertura política lenta, gradual e (in)segura.

Obra matriz

Cartas da Prisão é obra matriz de um escritor fecundo. Muito do que o autor publicou depois já estava ali, de algum modo entrevisto em palavra ou semente.

Como afirmou o mesmo Alceu Amoroso Lima: o testemunho religioso, moral, político e literário de Frei Betto abria capítulo novo na Igreja e na história do Brasil. Talvez o veio principal em que se propaga esta comunhão seja a palavra escrita e impressa, com sua dimensão perene. Quem sabe, no fundo, Frei Betto não sonharia em retirar-se e pairar acima dos embates cotidianos para dedicar-se, pastor de nuvens celestes, à tessitura do reino das palavras no papel? Mas este reino brota da terra e dos homens e mulheres que por aqui passam. Daí, deste cruzamento etéreo e tel úrico, se forja a obra que acumula 50 livros individuais, 25 em co-autoria e 49 traduções para o exterior, além de milhares de artigos - gerados pelo eixo comum e diversificado, árvore frondosa em ramos, frutos e flores.

Cristo, Marx e a mídia

Entre os momentos marcantes da publicação (que alterna, em harmonia, fina sensibilidade estética e contundentes denúncias sobre os cárceres e a sociedade da época) está narrativa cotidiana da inédita greve de fome de 39 dias vivida pelo autor e mais 35 presos políticos em 1972. O extremo despojamento levou Frei Betto a um êxtase espiritual comparável aos dos místicos de diferentes tradições religiosas, além de consolidar sua crença no combate às injustiças e violências.

Folheando o exemplar, colhemos preciosidades. Dirigindo-se a jovens, a linguagem mudava: "(...) e o babado é esse mesmo que a garotada aprende sem ter consciência porque se amanhã a massa glorificar um que todo dia bate na mãe o país inteiro entra na dele (...) a tel evisão acende e é só tiro que voa e soco e pontapé tudo regado a sangue". Ou na citação de um trecho do Novo Testamento lido à luz da prisão: "Bem-aventurados sereis quando vos ultrajarem, perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós, por causa de mim (Mt 5, 11)". E o relato do convívio inquietante, solidário e pastoral com os presos comuns, ainda hoje execrados: "Homicidas, ladrões, toxicômanos, es tel ionatários, pederastas - todos filhos de Deus. Procurei encorajá-los e servi-los como tal, malgrado o que fizeram ou deixaram de fazer".

Envolto em lúcida emoção, o livro, que brotou nas catacumbas da ditadura civil-militar, participou da gênese da Teologia da Libertação. As palavras e gestos sagrados ganham sentido revigorado: busca de utopia (o Reino dos Céus) e valorização da vida e da condição humana. Leitura saborosa, as cartas mesclam linguagem coloquial e irreverente com densidade doutrinária, atingindo o âmago da sociedade midiática e de consumo que se desenvolvia, com discussões teológicas agudas e divulgação do materialismo histórico e dialético, à maneira dos bons e velhos militantes comunistas. Há textos curtos e longos: envolveram familiares do autor, amigos, frades, freiras, bispos, cardeais e até o Papa Paulo VI, ao lado de combatentes que seriam assassinados pelas forças repressivas brasileiras. Envolvem, ainda hoje, os que têm fome e sede de justiça.




* Professor de História da UERJ



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