segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Poeta se despede


MEMÓRIA
O poeta se despede
Morto em 1º de janeiro, aos 67 anos, o professor rosariense Oliveira Ferreira da Silveira foi um dos precursores do movimento negro no país

Em conto publicado na antiga Revista ZH, em 1972, o professor Oliveira Ferreira da Silveira nos apresentou Zumbi e o colocou a subir o morro de uma vila de Porto Alegre. Revólver em punho, polícia nos calcanhares, a fuga pelos vãos dos casebres, ele chega em casa e é desarmado pelo filho: “Pai, tu veio!”. Mas Zumbi, perseguido, tem de seguir o rumo. Esgueira-se por vielas e alcança um casario pobre, olha em volta, vê negros prontos para o trabalho, brancos de macacões sujos, lusco-fuscos de capacetes de operários, garotos ranhentos e se dá conta, desconfiado, isso aqui é um quilombo.Conto raro, esse. Afinal, a especialidade de Oliveira sempre foi o verso e, assim, é reverenciado como um dos mais expressivos poetas negros brasileiros. Pois o professor morreu no primeiro dia do ano, abatido por um câncer, aos 67 anos de idade. Logo ele que aprendeu a ser um resistente na localidade de Touro Passo, zona rural de Rosário do Sul, fronteira com o Uruguai.Em torno do fogão, no pequeno sítio da família, o garoto Oliveira ouvia histórias de campanha e se intrigava com os causos dos negros rebeldes das charqueadas e das fazendas que escapuliam pelos matos em busca de liberdade. Devia ser intrigante mesmo, fugir do ferrolho, do castigo, da carga, da vida de escravo.O garoto cresceu, formou-se em Letras na UFRGS, digeriu os causos que o deixavam vidrado na cozinha do sítio e tornou-se poeta. Mais: vasculhou bibliotecas e arquivos e, outra vez, prostrou-se intrigado diante da ausência completa de heróis negros na história. Então Oliveira, um cara esguio e de sorriso fácil, fala mansa, cabelo grisalho desde cedo, que timidamente divulgava suas publicações em rodas de amigos, que esticava os olhos para as moças da Esquina Democrática na Rua da Praia, pois bem, Oliveira Silveira apeou do trono a Princesa Isabel e sua Abolição de 13 de maio.Entronou Zumbi e a data de 20 de novembro. Ele e o grupo Palmares, numa espécie de prenúncio do movimento negro que surgiria mais tarde, lançaram em 1971 a ideia que se alastrou para todo o país. Em 1978, 20 de novembro se transformou no Dia Nacional da Cons­ciência Negra.Oliveira pediu um café com leite no Mercado Público, tomou o ônibus para a Assis Brasil, na zona norte de Porto Alegre, e, em casa, num apartamento em que, juram, livros, jornais e recortes sobem pelas paredes, ele rabiscou novos poemas. Foram 10 livros publicados, a maioria em coletâneas, os escritores negros são muito próximos. Assim nasceram Germinou (1962), Poemas Regionais (1968), Banzo, Saudade Negra (1970), Décima do Negro Peão (1974), Praça da Palavra (1976), Pelo Escuro (1977), Roteiro dos Tantãs (1981) e Poema sobre Palmares (1988), além de antologias como aquela editada na Alemanha em 1988, e nos Estados Unidos, em 1993. Os alemães deram atenção a um poema:Encontrei minhas origensem velhos arquivos, livrosEncontrei em malditos objetostroncos e grilhetasencontrei minhas origensno lesteno mar em imundos tumbeirosencontrei em doces palavras, cantosem furiosos tambores, ritosencontrei minhas origensna cor de minha pelenos lanhos de minha almaAssim, dizem, o professor que dava divertidas aulas de português e literatura no Colégio Cândido Godói enfileirou-se com outros poetas brasileiros como Oswaldo de Camargo e Cuti – e por aí se encaminha o gaúcho Ronald Augusto.O jeito Oliveira de produzir também era um causo. Criterioso, detalhista, sem nenhuma pressa na vida, em fase de impressão de seus livros, ele costumava se imiscuir entre os gráficos, acompanhava de cima cada processo e não raro suspendia tudo para repensar um simples verso ou uma frase.Durante 40 anos, os grisalhos do Oliveira serviram de referência na Capital. Era assim nas reuniões infindáveis da revista Tição, final dos anos 70 e início dos 80. Ao final dos encontros, Oliveira tomava um “refri”. Era a única extravagância que ele se permitia.POEMASPELO ESCURO(fragmentos) Sou a palavra cacimbaprá sede de todo mundoe tenho assim minha almaágua limpa e céu no fundo.Meu canto é faca de charquevoltada contra o feitordizendo que minha carnenão é de nenhum senhor.Sou quicumbi e moçambiqueno compasso do tambor.Sou um toque de batuqueem casa de gege-nagô.Sou a bombacha de santo,sou o churrasco de Ogum.Entre os filhos desta terranaturalmente sou um.(...)No sul o negro charqueoulavroucarreteouno sul o negro remouteceuo diabo a quatroo negro no sul congoubumboubatucoua negra no sul cozinhoulavoudiabo a quatrono sul o negro brigouguerreouse libertouquer dizer: ainda se libertade mil disfarçadas senzalasprisõesdiabo a quatroonde tentam mantê-lo agrilhoado.MÃO-DE-PILÃOÁgua no oco,palha, grão.Soca, soca,Mão-de-pilão.Longe que é, longe que ficae a mão-de-pilão esmurrando acangica.Longe que é, longe que ficae a mão-de-pilão tocando cuíca.Água no oco,palha, grão.Soca, soca,mão-de-pilão.Socando, socando aos sol damanhã,o eco na serra parece tantã.Bate, bate... pra quê bate tanto?Longe tão longe que não adianta.Água no oco,palha, grão.Soca, soca,mão-de-pilão. jones.silva@zerohora.com.brJONES LOPES DA SILVA
Fonte: Zero Hora

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