sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Chacina em Gaza parte 2

A estratégia regional do Hizbóllah, no conflito de Gaza
Para o Hizbóllah, o ataque de Israel a Gaza era previsível e estava sendo esperado desde que Israel passou a violar repetidamente o acordo de cessar-fogo que assinara com o Hamás, acordo que, um mês antes de que expirasse, o Hamás anunciou que não renovaria. Parece muito evidente que o Hizbóllah já previa que Israel atacaria Gaza; parece muito evidente também que já operava associado ao Hamás, já há algum tempo.
Sinal de que houve essa coordenação de movimentos, Nasrállah falou pela televisão no dia 15/12, com o claro objetivo de começar a mobilizar apoio popular para uma campanha "sem prazo para terminar" para pôr fim ao bloqueio de Gaza e que seria lançada dia 19/12, vários dias antes de começar o assalto israelense contra Gaza. Não há como pensar em coincidência: dia 14/12, cinco dias antes, Khaled Meshall, líder político do Hamás, declarou formalmente o fim do pacto de cessar-fogo, que Israel, como se sabe, sempre violou e jamais respeitou.
Além dessa coordenação política, o Hizbóllah muito provavelmente ajudou o Hamás a preparar-se para enfrentar o ataque de Israel, seja por fornecer armas e treinamento, seja por contribuir no trabalho de planejamento militar estratégico. Os especialistas do Hizbóllah confiam muito na competência organizacional e estratégica do Hamás, o que não deriva de qualquer tipo de 'solidariedade' política e deriva, exclusivamente, de profundo conhecimento sobre o modo como o Hamás organizou-se, desde o início.
Também aí, nada há de adivinhação. É conclusão a que se pode chegar facilmente, a partir do que disse à imprensa Muhammad Raad, líder do bloco parlamentar do Hizbóllah em Beirute, dia 2/1/2009: "Israel se surpreenderá com o alcance dos Qassams que estão sendo fabricados em Gaza." O mesmo argumento já transparecia nas declarações de Nasrállah, em março de 2002, quando confirmou que os três combatentes capturados na Jordânia, quando contrabandeavam armas para a Cisjordânia, eram, sim, militantes do Hizbóllah. Na mesma ocasião, Nasrállah disse também que "é dever de todos contribuir como for possível para a defesa dos palestinenses, também com armas. Se houver crime aí, mais crime sempre haverá em os EUA armarem Israel, como sempre armaram, até os dentes."
A luta de resistência do Hamás também parece exibir a 'marca registrada' das táticas militares que o Hizbóllah usou na guerra de julho (abrigos subterrâneos interligados por túneis, e os foguetes, usados mais como instrumentos táticos e de propaganda, do que por algum poder de ataque, que os foguetes não têm). Tudo isso sugere que as forças militares do Hamás tenham sido longa e atentamente treinadas pelo Hizbóllah. Nasrállah chegou bem perto de admiti-lo, dia 31/12, quando disse que "a resistência em Gaza aproveitou, muito melhor do que o governo de Israel, essas lições [da guerra de julho]."
Mais do que apenas receber treinamento militar, as estratégias militares do Hamás parecem considerar todas as lições da "nova escola" criada por Imad Mughniyeh, estrategista militar do Hizbóllah, assassinado em atentado (e que, pessoalmente, disse várias vezes que treinara e equipara vários grupos da resistência palestinense, ao longo dos anos). Essas estratégias combinam táticas convencionais e não-convencionais da tradicional guerra de guerrilhas, concebidas tanto para libertar territórios ocupados quanto para protegê-los contra agressão.
A estratégia do Hizbóllah, em relação ao Egito
O Hizbóllah não coordenou sua atividade no conflito de Gaza apenas com o Hamás; coordenou-a também com o Iran. Indicação clara dessa coordenação foi o fato de a campanha iraniana contra o Egito, por ter fechado a passagem de Rafah, ter sido lançada poucos dias antes de Nasrállah ter sugerido que o Cairo chamasse de volta o seu representante diplomático em Teeran. Dia 12/12, o aiatolá Ahmad Khatami, membro do 'conselho de aiatolás', muito fortemente ligado ao supremo líder religioso do Iran, Imam Khamenei, esbravejou contra os governos árabes, em linguagem e tom que fazem lembrar o revolucionário discurso de Khomeini dos anos 80s: "Esqueçam o silêncio. São colaboracionistas. Colaboram com Israel."
Referindo-se nominalmente ao Egito, e à colaboração com Israel no bloqueio de Gaza, Khatami perguntou: "que fim levou seu islamismo? Que fim levou sua idéia de humanidade?" Na mesma linha, na fala de 28/12, mas mais incisivo, Nasrállah rejeitou que houvesse algum "silêncio" dos governos árabes; para ele, não se tratava de "silêncio", mas de declarada "parceria" com Israel. Como Khatami, Nasrállah também se referiu direta e nominalmente ao Egito, dizendo que, se mantiver fechada a passagem de Rafah, "também será parceiro do crime, parceiro de assassinatos e de assassinos, parceiro dos carrascos da tragédia de Gaza." Nesse ponto, o líder do Hizbóllah convocou "os milhões" de cidadãos egípcios a tomar as ruas e manifestar sua vergonha, seu ultraje, para pressionar o governo de Mubarak; ao mesmo tempo, conclamou o exército egípcio a pressionar o governo no sentido de abrir a passagem de Rafah – operação que, na prática, 'fura' o bloqueio que Israel impôs a Gaza.
Há quem veja a catarata verbal de Nasrállah contra o governo de Mubarak como pouco mais que tática diversionista ou compensatória, para desviar a atenção ou compensar o que, para esses analistas, seria apenas inação do Hizbóllah. Esse tipo de análise, contudo, não avalia adequadamente a evidência de que esse tipo de ataque direto a um governo árabe é muito raro nas falas de Nasrállah. Desde os anos 80, já há quase trinta anos portanto, o Hizbóllah não atacava de forma tão explícita um governo árabe, nem identificava algum governo árabe como inimigo. Nem durante a guerra de julho, quando foi muito clara e muito extensa a cumplicidade entre Israel e governos árabes, Nasrállah jamais conclamou massas árabes a pressionar governos árabes; e, desde então, as relações entre o Hizbóllah e aqueles regimes manteve-se estável. Naquele momento, o Hizbóllah claramente não desejava queimar pontes com os regimes árabes nem dar-lhes munição para os discursos anti-xiitas, que fariam crescer as tensões entre xiitas e sunitas. Dada a situação que se configurou em Gaza, de chacina e massacre, tudo leva a crer que o Hizbóllah entendeu que não é hora para luvas e procedimentos diplomáticos. Em fala do dia 7/1/2009, Nasrállah disse que, embora o Hizbóllah não visse como inimigos os governos que o traíram na guerra de julho "consideraremos como inimigos os que colaborem para o massacre de Gaze e dos palestinenses."
A política do Hizbóllah mudou; e a ação coordenada com o Iran é, quanto a isso, sinal de que está em curso uma estratégia comum, Iran-Hisbóllah, para expor a cumplicidade entre Israel e o governo de Mubarak, com vistas a obter a abertura da passagem de Rafah e o fim do bloqueio de Gaza.
Esses objetivos servem também ao objetivo maior de abalar os alicerces da aliança Egito-Israel, objetivo que, por sua vez, visa a enfraquecer a posição regional de Israel. Pelo que se pode observar, esse tipo de estratégia foi considerada necessária, dado o "abraço público" entre Egito e Israel, nos termos usados por um jornalista israelense (Haaretz, 9/1). Diferente do que houve na guerra de julho, quando Egito e outros governos árabes "moderados" limitaram-se a culpar o Hizbóllah por agressões cometidas por Israel, dessa vez o Egito sequer se deu o trabalho de fingir neutralidade, ao mesmo tempo em que buscava auferir alguma vantagem da campanha de Israel contra o Hamás. Na guerra de Gaza, o Egito não pode nem desempenhar o papel de mediador-conspirador, porque, de fato, é parte do conflito.
É sabido de todos que o Egito teve conhecimento antecipado do ataque de Israel a Gaza – e também há quem diga que 'encomendou' o ataque.
A indicação mais palpável de que há objetivos comuns, entre Egito e Israel, na guerra de Gaza, é a insistente recusa, do Egito, de abrir a passagem de Rafah, recusa que, de fato, é o movimento que, hoje, mantém o bloqueio a Gaza. O Hizbóllah e seus aliados consideram que a abertura de Rafah é a questão crucial para avaliar o futuro da guerra de Gaza.
Como Nasrállah explicou, dia 28/12: "Hoje, o Egito é o xis da questão do que acontecerá em Gaza. Se a passagem for aberta, e a população de Gaza puder receber água, alimentos, remédios, dinheiro e eventualmente armas, Israel será novamente derrotada, como já foi derrotada no Líbano." A importante experiência histórica do Hizbóllah comprova que o grupo não erra, nesse tipo de avaliação estratégica. Quando a Síria abriu uma passagem de fronteira para o Líbano, permitindo o movimento de alimento, armas e refugiados, o Hizbóllah desencadeou as ações que determinaram seu sucesso militar naquela operação, em 2006. No caso de Rafah, a abertura da fronteira é considerada ainda mais crucialmente importante, não só porque criará uma linha de suprimento para o Hamás mas, sobretudo, porque criará uma linha de sobrevivência para toda a população de Gaza, que enfrenta sítio que já está sendo comparado, sem exagero, aos mais cruéis sítios das mais cruéis guerras de todos os tempos.
Embora a estratégia de Nasrállah não tenha sido suficiente para persuadir Mubarak a abrir a passagem de Rafah, serviu para criar-lhe enormes problemas domésticos e regionais, e reduziu o papel do Egito, que deixou de poder continuar atacando e passou a ter de defender-se, superocupado com produzir contra-argumentos, todos insatisfatórios até agora, para responder às principais acusações do Hizbóllah, além de ter de ocupar-se, também, com mobilizar outros aliados "moderados", os quais tiveram também de passar a defender o Egito.
Além disso, para encobrir os muitos escândalos de corrupção que ameaçam sua estabilidade, o governo egípcio formulou agora uma iniciativa de cessar-fogo, na vã esperança de, assim, restaurar sua já perdida posição de prestígio na Região.
Para os palestinenses (e para a muito ampla maioria de árabes e egípcios) nenhuma ação restaurará o prestígio do Egito, enquanto mantiver fechada a passagem de Rafah. Além do mais, a própria iniciativa de cessar-fogo apresentada pelo Egito serve sobretudo aos interesses de Israel e aos seus objetivos militares, tanto quanto serve aos interesses de Máhmude Abbas, na medida em que visa a restaurar o acordo Fatah-Israel, de 2005, que entregava a supervisão da fronteira de Rafah às forças de segurança do Fatah e a forças européias de supervisão.
Embora o Hizbóllah ainda não se tenha manifestado sobre a proposta encaminhada por França e Egito, o Hamás já manifestou "graves reservas" sobre o mesmo tema; e o Iran rejeitou-a completamente, imediatamente. Pode-se supor, portanto, que o passo seguinte, na estratégia Hisbóllah-Iran, será garantir que o Hamás não seja encurralado até ser obrigado a aceitar a proposta do Egito, o que implicaria enfraquecimento político e militar do Hamás. O Hizbóllah e seus aliados apóiam integralmente o movimento pelo qual o partido Hamás recusa-se a se converter em equivalente islâmico do partido Fatah.

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